domingo, 23 de outubro de 2011

A filosofia é perigosa? É, e é bom que seja!

Numa obra elementar de introdução ao trabalho filosófico, Karl Jaspers diz o seguinte acerca dessa “deusa”, inicialmente grega, mais próxima de Atena do que de Afrodite, a filosofia:  


“Por uma questão de respeito pela tradição, é-se polido com a filosofia, mas, lá no fundo, não se lhe liga nada. A ideia feita é a de que ela não serve para coisa nenhuma. Podemos mesmo perguntar se ela não é já qualquer coisa de residual. Esta antipatia é visível em fórmulas como: a filosofia é demasiado complicada; não percebo nada; andam nas nuvens; isso são questões para especialistas; não tenho inclinação nenhuma para aquilo; é coisa que não me atrai minimamente.
Esta oposição pode revelar-se obstinada. Um instinto vital, oculto a si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu viesse a compreender alguma coisa, por pouco que fosse, isso implicava que eu “mudasse de vida”. Ver-me-ia com um outro estado de espírito, olharia para muitas coisas de um ponto de vista diferente, sentir-me-ia na necessidade de rever todas as minhas ideias. Filosofia?, nem pensar!
Segue-se o coro dos críticos que querem substituir a filosofia, coisa demodé, por qualquer outra coisa nova, verdadeiramente fraturante! Aliás, eles sabem que se não tiverem a filosofia por perto, o seu trabalho rende mais… É possível, em paz e sossego, trabalhar na manipulação das massas. É urgente impedir que as pessoas pensem pela própria cabeça.
As convenções, o hábito de julgar que o bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, a vontade ilimitada do poder, o fanatismo das ideologias, o compadrio dos políticos, tudo isto se revela na anti-filosofia. Esta gente não se apercebe disso porque não o compreende. Eles não se dão conta de que a sua anti-filosofia é em si mesmo uma filosofia, só que uma filosofia pervertida. O problema é, no fundo, o seguinte: a filosofia quer autenticidade nas coisas e eles não. Está visto, a filosofia incomoda mesmo!”
Karl Jaspers, Initiation à la méthode philosophique, Payot, pp. 142-143.

Incomoda mesmo Jaspers? Incomoda pois, mas tem incomodado pouco. Ser menor, cómodo, passivo, encostado é tão mais fácil e universalizável, adaptável à fluência indistinta do mundo e da vida do que o trabalho do pensar, do “pôr-se a pensar”. Jaspers fala-nos da perigosidade da filosofia, da “canseira” que ela nos traz… Também Kant o sintetizou há muitos anos: “é tão cómodo ser menor”. É mesmo. Até para os filósofos.
No entanto, é preciso referir que os textos de filosofia sobre a filosofia não são mais pensantes pela quantidade de obras que citam e divulgam, mas sim, e sobretudo, pela qualidade do pensar que tem em linha de conta a seguinte pergunta: afinal o refletir da filosofia incomoda ou não? Desestrutura, abala, ou não, a dissonância, o erro, a dúvida, o preconceito, o hábito, os costumes?
Cabe, antes de responder à pergunta proposta, reiterar que ao conceito de filosofia agrega-se um outro, a ele geminado e inalienável: o conceito de crítica. Crítica que desprotege e põe à prova “as convenções, o hábito de julgar que o bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, a vontade ilimitada do poder, o fanatismo das ideologias, o compadrio dos políticos.” E antes de apontar o dedo ao político e à sua elite economicista, apontemos primeiro a mão toda a nós próprios e pensemos o modo como vivemos, “sonhamos”, o nosso bem-estar. Será ele bem-viver?
Reflitamos um pouco acerca da mais quotidiana das suposições: “E se me saísse o euromilhões?” Os olhos humanos brilham à mesa do café, do restaurante, à saída do Continente e aí, nesses lugares-comuns, desalinhavam-se sonhos: carros, casas, piscinas, relógios, joias… Caraíbas. A questão material impõe-se: será que posso ser vizinha do Cristiano Ronaldo? E aí tudo borbulha, torna-se mágico. Agora, e antes de irmos ao compadrio político, pensemos a primeira suposição dita de um modo completamente diferente, mais profundo talvez: “E se eu me tornasse melhor pessoa?” Os olhos humanos certamente deixariam de brilhar, a sobrancelha levantar-se-ia e esperaria-nos a seguinte questão: “O quê?” A questão da dúvida. As pessoas estranhariam a nossa atitude, poderiam não dizer, mas, certamente, pensariam à boa maneira alentejana: “Esta não passa cá outro Inverno!” E não passa, pelo menos não da mesma forma, vivendo da mesma maneira. Isto porque mudar a forma como olhamos o mundo e a vida, reconhecer que andamos a vivê-la em tom diminuído, é um dos passos fundamentais para que nos coloquemos dentro dela e a refletir sobre ela, em autenticidade, em profundidade, com outro estado de espírito. Outra “forma” na qual cozemos o nosso próprio bolo: o interior.
Ao início de cada ano letivo é este texto de Jaspers que apresento aos meus alunos como pórtico do que é a filosofia e de como a entendo. E um deles disse-me em tom convicto: “professora, o problema está no consumo, na forma desmedida como gastamos os nossos recursos ou não os tendo recorremos ao crédito.” E porquê, pergunto eu? Porque queremos a semelhança futura do que não somos: ricos, famosos, visíveis, invejados, sociáveis, desejáveis, no fundo, fazermos o que nos dá na real gana sem pensar nas consequências das nossas ações.
E terá este estado de sítio humano – demasiadamente desumano - consanguinidade com o compadrio político? Tem, e tem muito. Esse ter de viver dimínuido na esperança da futura maximização da abundância, da riqueza, impossibilita a habitação humana do espaço público, e desvirtua-a num constante querer ser outro, não nós próprios. Vivemos além, não em si, não em nós. E é nessa utopia negativa de nós próprios que vamos anulando e relegando um “mudar de vida” ao ter na lembrança a música dos Humanos. Ao fim e ao cabo, os políticos aproveitam-se dessa perda da identidade pessoal, da autonomia dos seus cidadãos e cidadãs, e desgovernam-se a nós e a eles próprios. Quando nos tornamos escravos do consumo e incapazes de a ele reagir, confundimos bem-viver com bem-estar, ter muito, uma multidão, com ser pouco, no meio da multidão. A política como “governo de todos” torna-se política de muitos e, nesse horizonte, a crítica esvai-se no tagarelar banal das revistas cor-de-rosa: num estar e ser alguém que não somos, mas que desejamos ardentemente ser.
Pensar sobre a política torna-se demasiadamente exaustivo, faz mal à pele, exaure a nossa beleza. E o tempo que nos rouba? Enfim…
É por esta e outras razões que a filosofia é perigosa. Ela é perigosa e é bom que o seja. Ela imiscui-se no dado, no hábito, no que é costume fazer-se e dizer-se, nos preconceitos preguiçosos que em nós se entranham, consciente ou insconcientemente. Através do seu poder crítico dizemos: está mal, não é assim, muda lá essa maneira estreita de ser, sê de outra maneira. Transforma-te… transformemo-nos então pessoas e políticos dignos desse nome, movendo as regiões infernais (acheronta movebo) que Sigmund Freud dizia ser, na abertura da sua Interpretação dos Sonhos, o lado subterrâneo dos costumes que inconscientemente pautam a nossa vida quotidiana. Clarear é o trabalho “perigoso” do filósofo, mas é também uma vereda “salvífica” que se reveste de crítica e de convicção, numa palavra final jamais finalizada, de pensamento. 


Frida Kahlo, 1949
The Love-Embrace of the Universe, the Earth (Mexico), Me, Diego and Senor Xólotl
Mexico City, Collection Jacques & Natasha Gelman

domingo, 16 de outubro de 2011

"Nocturno a duas vozes" de Eugénio de Andrade

- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação...

- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que os meus dedos têm
para colher na noite.

- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento...

- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.

Eugénio de Andrade (1987), Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, volume I, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 104-105.  

sábado, 15 de outubro de 2011

Curiosidades óticas...


Ontem à noite revi o filme Inception de Christopher Nolan (http://www.youtube.com/watch?v=66TuSJo4dZM&noredirect=1) e é curisosa a similitude que estabeleci entre o filme "revisto" e algumas das obras de Escher que tive o prazer de ver na galeria da Fundação Eugénio de Almeida há uns meses atrás. Ambos "falam" acerca da sublimidade de um inconsciente paradoxal, mas criador, aterrador, mas magnânimo. Capaz de nos fazer sucumbir ou salvar.

Porquê palavras inconjuntas?

A nomeação deste blogue inspira-se nos Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro, especificamente num dos seus poemas "Criança desconhecida", o meu predileto:

"Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta."

Inspirada no poetar de Caeiro, sugiro assim pensar filosoficamente acerca do risco de nunca pensarmos nada absolutamente, isto é, com a pretensão do saber absoluto. Quando começamos algo, nunca começamos absolutamente e sim experiencialmente, relativamente a... A história é sempre o passado que nos diz quem somos e a filosofia diz-nos porque somos (e, também, porque deveríamos ser - melhores). Nesse risco reside, todavia, a possibilidade do saber filosófico. Um saber lançado para o que "há": para a poesia, a pintura, a política, a religião, o conhecimento, a tecnologia, no fundo, para o ser humano, o seu grande universal, embora "universal finito". E há bem pouco tempo numa conversa com um colega sobre o estatuto e o lugar da filosofia no mundo ele dizia-me "em filosofia nunca podemos escapar ao rigor das categorias" e eu concordei, mas ripostei: também nunca podemos furtar-nos à circunstancialidade do mundo, sair de si sem sermos acusados de solitários ou alienados (embora essa solidão ou alienação possa ser voluntária).
Uma das características fundamentais da filosofia é a sua tarefa radical em determinar algo conceptualmente, construir ou desconstruir ideias, analisando-as. Erradicar a dissonância, o preconceito, o erro, a dúvida pela lógica argumentativa do pensar procurando, nesse caminho, as várias "clareiras do ser" que se nos apresentam. Aqui Descartes e Heidegger não estão tão longe quanto advogamos. A filosofia determina, mas também prova, provoca. Não no sentido científico, mas sim vivencial. Quando digo que o pensar é uma provação é porque ele nos incita a prescrutar uma determinada realidade não certa e sim ilógica. Platão dizia num dos seus diálogos, Teeteto, que a filosofia nasce do espanto e eu acrescento: nasce de um espanto maravilha ou revolta, tanto no sentido positivo como negativo. O que ainda não é nosso, dá que pensar. O que ainda não sabemos, espanta-nos: sentimo-nos maravilhados ou revoltados com (com esse algo que a filosofia constrói ou desconstrói).
Por isso, Caeiro diz "vale mais a pena ver uma coisa pela primeira vez do que conhecê-la". Conhecê-la é ter ouvido contar. É apenas encadeamento, mostração, determinação pensante. É averiguar o que nos aparece, é conhecimento "contado". Em minha opinião, e de acordo com Caeiro, o poeta mais "anti-filosofia" por mim conhecido, o saber filosófico é também e ainda de outra ordem: da ordem do mundo, do quotidiano, da ação. O quotidiano é o seu laboratório, a vida real o seu campo de estudo. Senão não faria sentido dizer, por exemplo, que a ética é a moral pensada sobre a moral vivida e que o pensar se configura na imagem da provação. Um saber que é posto à prova porque questiona a realidade, julga-a, nas figuras da humanidade ou da desumanidade. E aí, neste último momento, reside a sua revolta, o seu descontentamento, um dos "principiares" da sua reflexão: o da revolta sim, não o da maravilha que toca o belo e o sublime. Saber o que é a filosofia, o seu sentido vivencial, é nunca esquecer as seguintes palavras de Ortega y Gasset no seu texto "Ensimismamiento y alteración": "enquanto o tigre não pode deixar de ser tigre, não pode destigrar-se, o homem vive em risco permanente de se desumanizar: ao homem sucede-lhe às vezes não ser homem". Este é um dos riscos sobre os quais a filosofia reflete, pensa, e de que dá provas em prol da humanização. É um trabalho de vigília, diria o meu amigo. É um trabalho de provação.