domingo, 16 de outubro de 2011

"Nocturno a duas vozes" de Eugénio de Andrade

- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação...

- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que os meus dedos têm
para colher na noite.

- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento...

- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.

Eugénio de Andrade (1987), Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, volume I, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 104-105.  

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