sábado, 15 de outubro de 2011

Porquê palavras inconjuntas?

A nomeação deste blogue inspira-se nos Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro, especificamente num dos seus poemas "Criança desconhecida", o meu predileto:

"Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta."

Inspirada no poetar de Caeiro, sugiro assim pensar filosoficamente acerca do risco de nunca pensarmos nada absolutamente, isto é, com a pretensão do saber absoluto. Quando começamos algo, nunca começamos absolutamente e sim experiencialmente, relativamente a... A história é sempre o passado que nos diz quem somos e a filosofia diz-nos porque somos (e, também, porque deveríamos ser - melhores). Nesse risco reside, todavia, a possibilidade do saber filosófico. Um saber lançado para o que "há": para a poesia, a pintura, a política, a religião, o conhecimento, a tecnologia, no fundo, para o ser humano, o seu grande universal, embora "universal finito". E há bem pouco tempo numa conversa com um colega sobre o estatuto e o lugar da filosofia no mundo ele dizia-me "em filosofia nunca podemos escapar ao rigor das categorias" e eu concordei, mas ripostei: também nunca podemos furtar-nos à circunstancialidade do mundo, sair de si sem sermos acusados de solitários ou alienados (embora essa solidão ou alienação possa ser voluntária).
Uma das características fundamentais da filosofia é a sua tarefa radical em determinar algo conceptualmente, construir ou desconstruir ideias, analisando-as. Erradicar a dissonância, o preconceito, o erro, a dúvida pela lógica argumentativa do pensar procurando, nesse caminho, as várias "clareiras do ser" que se nos apresentam. Aqui Descartes e Heidegger não estão tão longe quanto advogamos. A filosofia determina, mas também prova, provoca. Não no sentido científico, mas sim vivencial. Quando digo que o pensar é uma provação é porque ele nos incita a prescrutar uma determinada realidade não certa e sim ilógica. Platão dizia num dos seus diálogos, Teeteto, que a filosofia nasce do espanto e eu acrescento: nasce de um espanto maravilha ou revolta, tanto no sentido positivo como negativo. O que ainda não é nosso, dá que pensar. O que ainda não sabemos, espanta-nos: sentimo-nos maravilhados ou revoltados com (com esse algo que a filosofia constrói ou desconstrói).
Por isso, Caeiro diz "vale mais a pena ver uma coisa pela primeira vez do que conhecê-la". Conhecê-la é ter ouvido contar. É apenas encadeamento, mostração, determinação pensante. É averiguar o que nos aparece, é conhecimento "contado". Em minha opinião, e de acordo com Caeiro, o poeta mais "anti-filosofia" por mim conhecido, o saber filosófico é também e ainda de outra ordem: da ordem do mundo, do quotidiano, da ação. O quotidiano é o seu laboratório, a vida real o seu campo de estudo. Senão não faria sentido dizer, por exemplo, que a ética é a moral pensada sobre a moral vivida e que o pensar se configura na imagem da provação. Um saber que é posto à prova porque questiona a realidade, julga-a, nas figuras da humanidade ou da desumanidade. E aí, neste último momento, reside a sua revolta, o seu descontentamento, um dos "principiares" da sua reflexão: o da revolta sim, não o da maravilha que toca o belo e o sublime. Saber o que é a filosofia, o seu sentido vivencial, é nunca esquecer as seguintes palavras de Ortega y Gasset no seu texto "Ensimismamiento y alteración": "enquanto o tigre não pode deixar de ser tigre, não pode destigrar-se, o homem vive em risco permanente de se desumanizar: ao homem sucede-lhe às vezes não ser homem". Este é um dos riscos sobre os quais a filosofia reflete, pensa, e de que dá provas em prol da humanização. É um trabalho de vigília, diria o meu amigo. É um trabalho de provação.  

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