terça-feira, 15 de novembro de 2011

Slavoj Žižek ou a enxada do pensar

Žižek é um filósofo com um nome difícil (não sei ainda se o pronuncio bem ou mal) que tem tomado muitas das minhas horas de estudo “filosófico”. Um autor desconstrutor, provocador, sem deixar de ser “racional”. Contemporâneo sem deixar de responder aos desafios sapientes da modernidade. Do seu mais recente livro, Viver no Fim dos Tempos, há uma passagem que gostaria de partilhar e comentar:

“Este livro é um livro de combate, de acordo com a definição admirável e fundamental de Paulo: “Porque não lutamos contra a carne e o sangue, mas contra os príncipes, contra as autoridades, contra os que governam este mundo [kosmokratoras] de trevas e contra os espíritos do mal que estão nos céus” (Efésios 6: 12). Ou, traduzido na linguagem de hoje: “A nossa luta não é contra este ou aquele indivíduo corrupto, mas contra a generalidade dos que ocupam o poder, contra a sua autoridade, contra a ordem global e a mistificação ideológica que a sustenta.” Travar esta luta significa aprovar a fórmula de Badiou: mieux vaut un désastre qu’un désêtre [“mais vale um desastre do que um des-ser”] - mais vale um Acontecimento-Verdade, ainda que este acabe em catástrofe, do que vegetarmos na sobrevivência sem acontecimentos hedonista e utilitarista daqueles a que Nietzsche chamava os “últimos homens”. O que Badiou rejeita é, portanto, a ideologia liberal da vitimização, com a sua redução da política a um programa de evitar o pior, de renunciar a todos os projetos positivos e de escolher a opção menos má. Quanto mais não seja porque, como um autor judeu vienense, Arthur Feldmann, fazia notar, a vida é o preço que, em geral, pagamos pela sobrevivência.”

Sublinhei algumas passagens desta epígrafe: combate; desastre; des-ser; ideologia liberal da vitimização; mas não começarei por elas. Começo pelo título desta introdução: “Os espíritos do mal que estão nos céus”. Fazem-me silensiosamente lembrar o título de um livro de Fabrice Hadjadj que li há pouco tempo: A fé dos demónios. Os demónios têm fé e muita. Sabem inclusive as Escrituras na ponta da língua, para melhor delas se servirem, ao tomar como exemplo a provação bíblica de Jesus Cristo no deserto. O mal conhece o bem, sabe que há uma outra face mais inteira, mais íntegra e, por isso, mais custosa de alcançar…
Žižek é um autor profundo e profuso. Porque é capaz de ser altamente intelectual sendo consistentemente analisador do real, do quotidiano, de “descer” ao lugar onde a vida humana se dá, acontece, importa, onde se propaga cada vez mais o “des-ser”. Há, tanto quanto julgo entender, um objetivo claro em todos os seus livros: desmascarar. Tirar máscaras, as dele e as nossas… Na sua simplicidade intelectual reitera: “o capitalismo funciona cada vez mais como a institucionalização da inveja”. Essa é a sua funcionalidade: transformar a política em bio-política, esquecer os velhos combates ideológicos em prol da providência, da sobrevivência das vidas humanas: do querer, poder, ter, sentir, possuir, usufruir, gozar cada vez mais… sem freio, sem limites, sem fronteiras.
Pensar o limite do ser humano é algo que não fazemos de ânimo leve. Esquecemo-nos demasiadas vezes que existe uma fronteira que demarca o que podemos e o que não podemos fazer. Uma reflexão que relembra o trabalho da deusa Atena nas palavras de Martin Heidegger: delimita, demarca. Diz que há um risco que não podemos pisar. Mas pisamos e repisamos, sem pensar, a cada dia que passa.  É, portanto, nessa escassez de pensamento ou de exame - pois tal como disse um dia Sócrates, o filósofo, “uma vida não examinada, não vale a pena ser vivida” -, que o capitalismo funda e inaugura a dialética humana inveja-vitimização (ideologia liberal de vitimização, diz Žižek). Olho e quero ter também o que o outro tem. Se não tenho vitimizo-me, sou “coitadinha” e sem essa possibilidade de alcançar o que os outros alcançam, invejo-os. Não somos capazes de mais-ser. De um esforço e trabalho complementares que permitam o caminho da inveja ao altruísmo. Do “des-ser” de Badiou à “moral impessoal” de Nagel, por exemplo.
Explico melhor. Na obra A possiblidade do altruísmo Nagel partilha connosco uma convicção, que mais do que uma convicção é, a meu ver, um dilema moral dos mais acentuados. Partilha-o deste modo: "Posso não me preocupar com o facto de que o dinheiro que pago por uma refeição de três pratos permitiria que outra pessoa completasse uma coleção de selos, construísse um monumento ao seu deus ou tirasse alguns dias de folga, mesmo que essas coisas tenham mais importância para ela que a refeição para mim. Mas não posso ser igualmente indiferente ao facto de que esse dinheiro poderia salvar alguém de subnutrição, da malária ou talvez, de forma mais indireta, do analfabetismo ou da prisão sem julgamento." A convicção de Nagel desoculta um dos dilemas morais mais exigentes da nossa época. Dilema que exige de nós. E de facto estamos tão pouco habituados a reconhecer valor a conceitos como obrigação, exigência, autoridade que vamos preferindo a todo o momento a liberdade como libertinagem, o direito como interesse, o indivíduo como isolamento de si. Por isso Nagel argumenta a favor de uma “moral impessoal”. Um ponto de vista do indivíduo que é seu, mas que também não o é. Explica, portanto, a estrutura dessa moral impessoal como a capacidade do ser humano se abstrair de si mesmo e chegar aos outros, despersonalizando-se, sendo nessa abstração menos eu, menos si próprio. Despindo-se de si… O argumento de Nagel tem então uma sintonia com Kant. Tem como ponto de referência e de saída a universalidade. Mais uma vez moralidade e humanidade coincidem. Pessoalidade e impessoalidade cultivam-se a par, embora a segunda seja muito mais forçada, necessitada de empenho e de esforço, tendo em conta sempre uma ressalva: “sendo quem somos não podemos ir totalmente além de nós mesmos.”
Contudo, e se naufragámos, diz Žižek, no ponto-zero da sociedade, haverá ainda “possibilidade” para o altruísmo exigido por Nagel? Não andarão os demónios inteligentes (os detendores do poder) a dominar demasiadamente o céu (o mundo) para conseguirmos responder a este desafio?
Žižek furta a sua resposta a um caminho. Ao caminho da passividade, da diminuição, do hedonismo, das decisões “melhores” que o capitalismo inventa para evitar o pior, a catástrofe, a destruição. O caminho do filósofo não é o da universalidade, da impessoalidade, como em Nagel por exemplo.
O seu trilho é o da singularidade, da autonomia, a fortiori, da exclusão. Nesse trilho, se ele for acontecimento-verdadeiro, “nosso”, dá-se a catástrofe, a destruição maciça da massificação do capitalismo, como resposta ao des-ser ou ao deixar de ser humano no mundo. Pensar-alerta. O que acontece dentro de nós deve ser a verdade, diz Badiou, deve mostrar um ser cultivado e não dissimulado, cultivado pelo pensar, pelo julgar que examina a ação. Mais vale excluir, apontar o dedo ao que está mal, do que incluir valores diminuídos e apoucados como o da passiva tolerância multicultural que se expressa no argumento “deixem-nos a nossa cultura” apesar de ela ser altamente segregadora tal como podem assistir na televisão à hora do jantar... Lembram-se: “mais vale um desastre do que um des-ser”, ou seja, uma mudança excludente de paradigma do que um ser humano abafado pelo flacidez do mundo.
Comecei com Žižek, termino com ele: “Quando nos são mostradas imagens de crianças que morrem de fome em África, incitando-nos a que façamos qualquer coisa para as ajudar, a mensagem ideológica subentendida é do género: “Não pense, não politize, esqueça as causas da miséria, aja, contribua com o seu dinheiro, de modo a não ter de pensar!” Rousseau compreendera já perfeitamente a má-fé dos admiradores multiculturalistas das culturas alheias, quando, no Émile, nos alertava contra o filósofo que ama os tártaros para se dispensar de amar o seu vizinho mais próximo.”
O problema moral fulcral está na proximidade, não na universalidade. Poderia teologicamente apelar à máxima “ama o teu próximo como a ti mesmo”, contudo, não o farei. Faço somente apelo à convicção aristotélica: “é a partir do amor por si próprio que todas as disposições de afeição e amor se estendem depois também aos outros”. Ninguém é capaz de philia sem philotimia. De amor sem amor-próprio. De justiça sem si-próprio. Estes terrenos movediços da singularidade, Žižek escava-os pelo pensar e ilumina-os pelo dizer numa via sempre freudiana: a da sublimação.

Heinrich Hoerle, Máscaras, 1929

   

3 comentários:

  1. Muito interessante Professora, porque interrelaciona vários autores. E tem a coragem de abordar o Zizek que é tão desconcertante e, ao mesmo tempo,relembra-nos que não devemos aceitar tudo como se o mundo já não precisasse de nós (demissão). Como se fosse aceitável que em pleno século XXI ainda haja pessoas que não tem as condições mínimas de conforto, segurança e de desenvolvimento pessoal. Como se fosse justo que nascer no hemisfério norte ou no sul marque decisivamente a nossa vida. Como se a pobreza, o sofrimento e desigualdade se tornassem uma banalidade "quando nos são mostradas imagens de crianças que morrem de fome em África ...“Não pense, não politize, esqueça as causas da miséria, aja, contribua com o seu dinheiro, de modo a não ter de pensar!”, algo para contrastar um mundo profundamente diferente. Que valores têm enformado as nossa acções, as nossas pequenas realizações pessoais? O homem já não pode fugir da sua individualidade, da sua contingência solitária, da sua inalienável existência com direitos e deveres. Se chegou até aqui após um longo caminho, trai duas vezes a sua condição, porque não quer ser, no sentido de existir, nem quer viver, porque não se aproxima suficientemente do outro para o entender, e por vezes, não o tolerar.

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  2. Obrigada Ruben. Obrigada Raquel. Este texto pode bem ser um espelho ou um reflexo das nossas aulas. Zizek é quase sempre uma presença assídua, diagnóstica do real cuja reflexão nos toma. Tal como diria Nietzsche o filósofo deve ser um médico da realidade, analisá-la e pensá-la de um modo diferente ao já existente, já dado. Vamos continuar a pensar... nas entrelinhas. Obrigada

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