sexta-feira, 30 de março de 2012

Da justiça como autonomia



A conquista do filósofo, Giorgio de Chirico


(Depois de alguns meses como bloguista, partilho hoje convosco um texto sobre Adela Cortina. Ainda não a tinha referido nas minhas lides cibernéticas. Este texto é fruto da minha intervenção no Colóquio Crise e Civilidade que se realizou dia 29 de março de 2012 na FLUP)



Da justiça como autonomia
O conceito e a conceção de civilidade de Adela Cortina 

“Mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades”.
É este o mote camoniano de Mia Couto n’O último voo do flamingo. Palavras poéticas que elucidam, logo à partida, a fragmentação entre o pensamento e a ação, ou para dizê-lo já com Adela Cortina, entre as filosofias kantianas e um povo hobbesiano ou até menos hobbesiano do que alguma vez Thomas Hobbes pensara. Nas palavras de Paula Pereira, em diálogo com Hölderlin, “É quando o mundo se torna mais problemático, é quando o nosso mundo perde sentido e consistência, que a filosofia recomeça. A filosofia nasce especialmente em tempos de desamparo.” A situação crise afeta política, economia, cidadania, civilidade, vontades e vontade. Autonomias que se desnudam numa acrasia crísica comum, cujo espaço-tempo dá que pensar à filosofia munida do seu mais geminado conceito: o conceito de crítica. Crítica das instituições e das pessoas na medida da justiça. Na medida da humanidade. 

Da justiça
O conceito e as conceções de justiça multiplicam-se através do poder das ideias. Advindas dos vários gabinetes e debates académicos, cuja raiz política é fruto da República platónica, elas bem ditam o que deve ser a justiça na tríade liberdade-distribuição-igualdade. Um dos exemplos contemporâneos mais férteis dessa idealização é a obra Uma Teoria da Justiça de John Rawls. O grande objetivo de Rawls é a fundamentação de uma “sociedade bem ordenada” assente em princípios corretos, válidos para qualquer político, juíz ou cidadão. Progressivamente entendida, a dinâmica das instituições tornará mais justa a prática da cidadania ao inspirar cidadãos menos egoístas e desinteressados de si mesmos.
Para tal servirá a ficção ou a hipótese da posição original

“A posição original é definida de tal forma que representa um status quo no qual quaisquer acordos alcançados são justos. É uma situação em que as partes estão representadas igualmente como pessoas morais e o resultado não é condicionado por contingências arbitrárias ou pelo equilíbrio relativo das forças sociais.”

E a imaginada posição serve para estabelecer a diferença entre 1. as doutrinas compreensivas de bem comum (que todas as pessoas reconhecem num determinado projeto de vida, na sua profissão ou religião por exemplo); e 2. a compreensão universal da ideia de justiça a promover pelas distintas instituições sociais. A favor da neutralidade de justificação do que é justo suspende-se a vida boa à maneira da êpoche husserliana. E assim perante esta suspensão e distinção, sobretudo contra elas, pergunto: Não será a justiça a virtude que melhor expressa a ligação entre a bondade e a inteligência? Não é ela o maior dos bens? Porquê submetê-la somente ao correto funcionamento das instituições sociais, transformando o direito na tarefa primordial da filosofia?
Antes das respostas, apresento os dois princípios da justiça de Rawls: 1. princípio de liberdades fundamentais para todos (equal liberty), e 2. princípio da igualdade de oportunidades o qual pressupõe o princípio da diferença (difference principle). Este segundo princípio expressa-se numa bipartição de objetivos: a) igualdade de acesso aos mesmas cargos e benefícios e b) igualdade distributiva dos bens económicos, mormente rendimentos e riquezas. Estes dois princípios da justiça surgem quando as partes da posição original se sujeitam e pactuam sob o “véu de ignorância”, ou seja, no desconhecimento em relação à sua vindoura posição social. 
Relembrando Max Weber, a ideia de justiça de Rawls responde ao apelo de uma ética da convicção, deontológica, desinteressada do contexto e da sua contaminação. Uma ética sem moral, diria Adela Cortina, distante da ética da responsabilidade, da ponderação entre os meios e os fins e das suas previsíveis consequências. Rawls pretende precisamente tornar a filosofia moral algo não-avesso à prática e à retórica políticas, tornando esta última mais intelectual e inteligente. Contudo, essa demanda acaba por colocar a ética contra a própria moral fechando-a numa reflexão transcendental das instituições radicalmente distante das nossas conceções morais, em última análise, de nós próprios. 
            Ficamos assim perante o dilema: “Rawls e para além de Rawls”. É este o título que Amartya Sen dá a um dos capítulos da obra A ideia de justiça que dedica a John Rawls. No entanto, a sua argumentação parte desde logo de um paradoxo, à partida, irreconciliável: o da relação entre a institucionalização transcendental da justiça e a sua realização comportamental. A pergunta à qual Sen diz ser imperativo responder não é a da condição de possibilidade a priori da justiça. É a da capacidade ou das capacidades que estão em jogo na redução do seu contrário: a injustiça. O juízo comparativo valerá então mais do que a posição original e a sua ficção. A circunstância que se pondera e critica valerá mais do que a teoria que se deseja. De facto, posso saber na ponta da língua o que é a posição original, a equidade, a liberdade, a igualdade, a justiça, mas sem realização crítica desse saber jamais conseguirei responder à pergunta fulcral de Sen: afinal, como podemos reduzir a injustiça?
A métrica da igualdade social, examina Sen em relação a Rawls, não pode centrar-se apenas na distribuição de rendimentos e riquezas. Como avalia João Cardoso Rosas sobre este tema: “o essencial não é a quantidade de dinheiro que se possui, mas o facto de isso proporcionar - ou não - o acesso ao que é essencial à vida humana num contexto específico e dependente de uma série de factores diferentes, como o ambiente natural, as tradições culturais e religiosas, etc.”
É preciso aproximar pelo exame e pela crítica, capacidades fundamentais, instituições e pessoas, inteligência e bondade, e não apenas ficcionar essa realização, pois tal como advoga Sen “perguntar como vão as coisas e indagar se poderiam ser melhoradas, [é] uma parte integrante da demanda da justiça a que não se poderá escapar e que, aliás, deverá ser constante.” Michael Sandel defende-o também: “a justiça não tem apenas que ver com a forma certa de distribuir coisas. Tem igualmente que ver com a forma certa de valorizar as coisas.”

Da justiça como autonomia
Em 2001 Adela Cortina publica a obra Alianza y contrato: política, ética y religión. Nela estabelece, com vigor filosófico, a relação entre uma ética de mínimos, portanto cívica, e uma ética de máximos, configuradora do bem comum.

“A ética cívica é o conjunto de valores e normas que partilham os membros de uma sociedade pluralista, sejam quais forem as suas concepções de vida boa, os seus projectos de vida feliz.”
“O cumprimento da ética cívica pode exigir-se moralmente à sociedade (…). As éticas de máximos não podem ser objecto de exigência numa sociedade, apenas de convite.”

Cortina assume uma posição de relação mútua e, por sua vez, de não absorção entre a ética de mínimos e a ética de máximos. Ou para dizê-lo com Jonh Rawls entre a ideia “universalizada” de justiça e as distintas doutrinas compreensivas do bem comum. Uma não pode jamais subsumir a outra a bem da vida democrática e da vida circunstanciada, ou para dizê-lo com Aristóteles, da vida feliz. Por um lado, “os mínimos alimentam-se dos máximos”, ou seja, já inserido numa determinada comunidade, o cidadão deve responder às exigências da justiça, saber que esta mais do que um princípio é um valor, um bem. Por outro lado, “os máximos têm de purificar-se a partir dos mínimos.” Pensemos no caso do fundamentalismo religioso que faz coartar, através da ação violenta, o princípio incondicionado da humanidade. Não se purifica neste último e, portanto, perpetua a intolerância e a violência. E Cortina é clara neste ponto: ética de minímos e ética de máximos não podem ser autosuficientes. Se o forem acabam por “engolir o homem” e consequentemente a humanidade. Volvidos seis anos após a publicação de Alianza y Contrato, Adela Cortina escreve Ética de la razón cordial e como veremos, pela epígrafe abaixo citada, a sua conceção de civilidade não se centrará apenas na diferenciação entre ética de mínimos e ética de máximos. Recentrar-se-á na configuração humana do humano, ou seja, na forja ou inauguração do caracter. E diz o seguinte:

“A ética cívica foi-se constituindo como o conjunto de valores e princípios éticos que uma sociedade moralmente pluralista partilha e que permite aos seus membros construir a vida juntos.
Era - e é - a ética das pessoas enquanto cidadãs, comprometidas na vida de uma comunidade política da qual devem ser protagonistas indiscutíveis. (…)
Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos, e nunca instrução em princípios políticos, por muito que pertençam a constituições democráticas e por muito que se explique a história através da qual se geraram tais constituições.”

Sublinho: “Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos”. O importante não é somente averiguar a justiça das ações levadas a cabo pelos seres humanos, é preciso saber ver se o sujeito que as protagoniza é um ser humano justo, com um caracter bem construído e, por sua vez, educado.  Voltamo-nos assim para questão do êthos como morada do ser, como toca diria Martin Heidegger, cuja “decoração” é inteiramente nossa e deverá ser integralmente autónoma.
E por esse motivo nomeio a justiça de autonomia.
Explico agora melhor essa nomeação. Em 1986, no prólogo dedicado à obra Ética mínima de Adela Cortina, José Luis Aranguren apontava às éticas procedimentais da justiça, de Kant a Habermas passando por John Rawls, a seguinte limitação: “À ética intersubjectiva, deve conjugar-se a ética intrasubjectiva, ou seja, o diálogo que cada um de nós somos.”
Se aprendemos com Aristóteles, e antes dele com o mestre Platão, a radicalidade do diálogo que devemos reavivar constantemente conosco próprios, ao jeito de exame diria antes Sócrates: “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”, a ética deve então ser prefácio da política e não o contrário. Em todo o caso, continuamos a insistir na inversão do percurso moral do ser humano ao mundo e valoramos apenas a ética como ética social dialógica. Colocamos a educação para a cidadania, por exemplo, antes da educação moral. E José Luis Aranguren tem razão, embora uma razão intempestiva: antes de o ser humano ser um diálogo inter, um diálogo com os outros, deve ser um diálogo intra, num pensar que examina o seu caracter e, por sua vez, o cria, inaugura e elenca aos mais próximos. Aranguren vê com acutilância o perigo de dissolução do fenómeno moral no direito e na política, reduzindo-se assim a ideia de valor aos princípios éticos e o papel inédito do sujeito em sociedade à responsabilidade das instituições.
Para concluir, refiro-me à definição de autonomia da vontade de Immanuel Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes:

“autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei. O princípio da autonomia é: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo como lei universal.”

A ética é primordialmente uma questão de atitudes. Kant tinha consciência desse factum da razão. O “querer mesmo”, a vontade, deve ajuizar e agir em sintonia com a “lei universal”. A autonomia pessoal deve ser capacidade autolegisladora de universalização. Deverá sê-lo. Sobretudo para aproximar cada vez mais autonomia e justiça, pessoa e humanidade. Realizar a lei moral dentro e fora de mim. No fundo, temos de viver sempre nas proximidades do seguinte dilema: “direito e política parecem bastar para regular as relações sociais, sem necessidade de perguntar à filosofia se são ou não humanas.” Este dilema é lançado por Adela Cortina em tom de suspeita, mas remete-nos também para a dimensão da esperança, da colheita. Indagar pela justiça é perguntar pela humanidade do humano, é perguntar por si próprio e pelo outro nas fronteiras que nos separam da desumanização. E mais do que perguntar, é fazer humanidade. Parafraseando Ortega y Gasset “o tigre não pode destigrar-se, mas o ser humano pode desumanizar-se” e para que tal não aconteça é preciso que Karl Jaspers tenha razão. E a tenha sempre. É preciso que a filosofia seja perigosa, que incomode… E que o seja munida do seu mais geminado conceito: o de crítica. Crítica constante em relação “[às] convenções, [ao] hábito de julgar que o bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, [à] vontade ilimitada do poder, [ao] fanatismo das ideologias, [ao] compadrio dos políticos.” É preciso indagar se as relações pessoais e sociais são ou não humanas, uma reflexão que é constante, disse-o mais acima Amartya Sen, e cuja constância é a bem da tensão entre liberdade e civilidade, autonomia e justiça.