segunda-feira, 9 de abril de 2012

Economia sem ética ou economia sem pessoas?



Sapatos, Vincent Van Gogh


Num artigo publicado no Jornal El País, intitulado “Economía sin ética", Adela Cortina acusa e critica o modelo moderno de economia empresarial, uma economia “sem pessoas”, que foi paulatinamente esquecendo a sua responsabilidade para com a sociedade afastando-se cada vez mais dela em prol do lucro, do consumo. Este parece ser hoje o único caminho feliz, conducente à boa vida, não à vida boa. E passamos do grande irmão ao grande engano…. Por sua vez, Cortina diz o seguinte e pergunta:  

“En el documento de la última cumbre del G-20, los líderes mundiales hacen una afirmación asombrosa: “Reconocemos la dimensión humana de la crisis”. Pero ¿es que ha existido alguna vez una actividad económica sin dimensión humana? ¿No es cierto que la economía ha de ayudar a construir una buena sociedad y, cuando no lo consigue, fracasa rotundamente, teniendo en cuenta que esa buena sociedad hoy ha de ser mundial?”

A bota que sempre nos quiseram calçar, aquela que pretendia maximizar a felicidade para o maior número de pessoas através dos bens materiais, da riqueza económica bem distribuída gastou-se, falhou. E hoje reconhece-se “a dimensão humana da crise”. Voltemos então às pessoas e esqueçamos a economia. A crise é bem mais profunda e incide precisamente no “modelo” de pessoas, na mentalidade que sempre lhes incutimos durante anos e que agora queremos transmutar. Por isso, e para além de uma economia sem ética, sem uma forma certa de distribuir coisas, devemos antes falar de uma economia sem pessoas, ou seja, sem uma forma certa de valorizar as coisas, sem capacidade para estabelecer a fronteira entre o necessário e o supérfluo, a boa vida e a vida boa. Tal como refere Adela Cortina, a economia tem por obrigação ajudar a construir uma boa sociedade, a emancipá-la, e não recorrer à redução, ao esvaziamento do pensar em prol da estandardização do ser humano, da própria sociedade esquecendo a responsabilidade. É esse o “modelo” filosófico, tão fácil de absorver, que está por detrás de uma economia de mercado. Libertar as pessoas de uma certa forma de obediência que as obrigue a pensar nos outros, em responsabilizar-se por eles, eclipsando-se do mundo. Já diz Zizek no seu livro Viver no fim dos tempos e di-lo mais ou menos assim: façam donativos para os meninos pobres de África, já que esse donativo ajudar-vos-á a não pensarem na causa efetiva da pobreza. Contribuam, mas não pensem, não apontem o dedo, essa crítica não vos levará a lado nenhum.  
É interessante que enquanto lia este artigo de Cortina que convosco partilho, estava ao mesmo tempo a reler o livro Justiça: fazemos o que devemos? de Michael Sandel. Um livro cujo tom reflexivo tenta enlaçar justiça e bem comum, direitos e deveres, ou se preferirem, economia e responsabilidade. Segundo Sandel devem existir sempre brechas tanto no discurso político quanto no discurso económico. A justiça como distribuição de bens deve ser colmatada pela visão de que a justiça é um bem, o maior dos bens, e não deve estar somente sujeita ao discurso legal ou legítimo dos direitos humanos e das suas distintas gerações. Essa brecha é alinhavada pela crítica e pelo empenho moral, os quais devem ser sempre parte integrante da pergunta pela justiça. À custa de tanto delegarmos as nossas decisões morais nos outros, temos vivido de facto muitos dramas pessoais. Esquecemo-nos de que a “costura” da justiça é singular, humana, pressupõe um cerzir que é só nosso e, portanto, insubstituível. Mas será que temos assim tanta margem de manobra, ou de ação, para sermos singulares? Humanos? Para decidir moralmente? Para ser pessoa, independentemente da política ou da própria economia? Em suma, será que sabemos fazer a coisa certa, apesar do errado que nos rodeia e consome? Consome no consumo?
 “Fazer a coisa certa”. É esse o dilema que Sandel nos propõe no início da obra Justiça: fazemos o que devemos? Inicia-a com a reflexão acerca do furacão Charley que se abateu sobre a Florida em 2004. “Após a tempestade vêm os abutres” rezava o USA Today. E expressava-o porque, após a tempestade, houve um aumento brutal na especulação dos preços: 23 mil dólares para retirar uma árvore do telhado de uma casa, 500 doláres por um quarto de hotel, onde o normal seria a cobrança de 40 doláres, entre outros episódios. Aqui não se fez a coisa certa. Independentemente do sofrimento e das necessidades das pessoas os preços aumentaram levando ao desespero e à ira pública de muitos. Indignação. Bem diz Aristóteles na Ética a Nicómaco que a ira é o exemplo paradigmático das emoções e o primeiro motor da justiça, ou seja, o despertar “cardíaco” e emocional perante a injustiça. Quem se aproveita desta especulação “não tem coração” perante o sofrimento das pessoas, apenas vê números e essa é a situação alarmante que hoje se perpetua: se os outros fazem porque é que eu não hei-de fazer? Não vale mais a pena sermos todos injustos, já que o mundo é já de si injusto? Economia sem pessoas?
Em todo o caso não precisamos de ir à Florida para exemplificar este distanciamento entre mercado livre e humanidade. Basta pensarmos no caso português quanto ao aumento constante do preço dos combustíveis. O governo português sabe que esta situação asfixia pessoas e empresas, mas nada pode fazer, diz. Alheia-se da situação com o argumento do Estado mínimo que tudo privatiza, enquanto guarda nos seus cofres as contribuições das gasolineiras, pagas por nós. Concorrência não existe, mas cartelização há muita e já todos nos apercebemos disso. Os bancos continuam a ter lucros exorbitantes, as gasolineiras também. E eles próprios o expressam embora sub-repticiamente: das pessoas eclipsemo-nos, até porque elas já se eclipsaram de si próprias. Perderam não só a sua casa (oikos), mas igualmente a sua morada (êthos). Tudo se globalizou e mundializou. E a singularidade estilhaçou-se. E essa é, a meu ver, a pior de todas as crises. A crise que afecta a nossa individualidade nos interstícios da globalidade. Que esquece e engole, por antonomásia, o homem comum. E não quero com isto dizer que o social não seja importante, mas se não formos capazes de a partir da nossa liberdade colocar as regras do jogo em jogo, criticá-las, a “choldra ignóbil”, para lembrar Eça, continuará a comandar-nos e comandará sempre.


6 comentários:

  1. Sem dúvida: uma economia de mercado, se não for devidamente regulada, cedo se perverte e, por fim, subverte. O problema é que este perverter/subverter não se faz isoladamente: leva a democracia com ele. "E eles próprios o expressam embora sub-repticiamente: das pessoas eclipsemo-nos, até porque elas já se eclipsaram de si próprias. Perderam não só a sua casa (oikos), mas igualmente a sua morada (êthos)." Concordo absolutamente com esta citação. A alienação do humano hoje é diferente daquele que Marx propôs inicialmente. O homem é hoje mercadoria, consumidor mas sobretudo produto. Basta ver como funciona o "mercado de trabalho". Só quem está disposto a "vender-se barato", ou seja, a ser mal pago para trabalhar muito, pode contar em ter um trabalho. Se não estiver bem, pode sair porque não falta oferta de mão-de-obra. É esta a condição das sociedade ditas liberais nos tempos de hoje. Uma economia com ética, como bem refere, é um retornar do homem à sua casa, à sua morada. Não é por acaso que economia vem de oikonomos (governo da casa) e ética, no ethos original significa morada. Sim, é preciso denunciar. Denunciemos pois.

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  2. O grande problema é que ostracizámos Karl Marx cedo demais, causa das suas invariáveis interpretações e transformações na vida pública, demasiado pública. Eu sei que Marx advoga o contrário da minha posição. Menos indivíduo, ou menos singularidade diria melhor, e mais sociedade, mais união. Mas Marx tinha razão quanto à injustiça que a luta de classes perpetua e à sua pretensão em deixar sempre tudo como está. Parece-nos que o fracasso é sempre socialista. Apenas quando algo corre mal é que nos lembramos dos antigos modelos e dos velhinhos filósofos. Pretendemos mais igualdade e menos liberdade. A grande questão é que nós podemos ser livres sozinhos, mas nunca podemos ser iguais sozinhos. Temos de nos comparar sempre a alguém na pergunta pela igualdade, e essa pergunta é sempre mais trabalhosa: "afinal, sou igual a quem?" Será que aquela pessoa com quem me comparo é mais merecedora do que eu de certos bens e benefícios? São perguntas sempre intempestivas e, desde logo, se não tivermos uma vivência forte da liberdade, no sentido de termos também a capacidade de perceber que também dependemos e muito dos outros, nunca conseguiremos encetar esse caminho. É como refere Amartya Sen: "Vivemos num mundo em que poderá ser muito difícil ser-se completamente independente da ajuda e da boa-vontade dos demais, e, por vezes, aliás, poderá nem ser essa a coisa mais importante a alcançar." Ele di-lo muito melhor do que eu.

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  3. Respostas
    1. Extraordinária é esta (re)educação do "sentido" como alguém refere e muito bem. Ou dos sentidos, singulares e comuns. São precisas muitas horas extra de trabalho para lá chegar e não sabemos bem se alguma vez atingiremos esse ponto alto de humanidade. É continuar...

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  4. Mas o que se poderia fazer para introduzir mais ética na economia? E como fazer isso sem que a emenda seja pior que o soneto (que é o que sucede com o comunismo)?

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    1. Caro Carlos Pires. Desde já agradeço a sua questão. Não se trata de comunismo nem de interferência direta, totalizadora, do estado na economia. Sabemos bem que as economias planificadas nunca deram bom resultado. Trata-se de introduzir regulação, regras no "jogo económico". Ao mesmo tempo, é necessário que o estado se retire da economia. Grande parte do problema da falta de ética na economia confunde-se com o problema da falta de ética na política. Sabemos que a política, o estado, muitas vezes privilegia determinadas corporações e empresas - nomeadamente por via das PPP´s e dos concursos por ajuste directo -. Os concursos públicos para empreitadas públicas, por exemplo, não são transparentes e não se baseiam no princípio da qualidade e do mérito, mas no compadrio e no suborno. Isto não favorece a concorrência e não promove o mérito e a qualidade das empresas. Eis um exemplo para introduzir regras na economia: libertar a economia da política e do estado. O Estado deve cumprir o seu papel nas áreas que lhe competem diretamente: saúde, educação, segurança e justiça. Ao mesmo tempo, a política, o estado, deve canalizar os seus recursos para a regulação. Os reguladores - nomeadamente a autoridade para a concorrência - devem também eles ser despolitizados no sentido de reforçar a imparcialidade das suas decisões e permitir uma efetiva e saudável concorrência. Não devemos menosprezar a importância da implementação de uma ética empresarial, de uma deontologia. Os empresários, nomeadamente aqueles que têm um maior volume de negócios, são líderes e administradores de grandes corporações e portanto têm uma maior responsabilidade social, devem ser responsabilizados cada vez mais pelo impacto que possam ter nas vidas dos seus colaboradores, pelas condições que lhes oferecem, e também pelo impacto social do seu trabalho. Parece-me a mim que o problema da falta de ética na economia é, sobretudo, um problema de ética na política. O estado deve regular, ser transparente, redistribuir equitativamente a riqueza - o que não significa igualitariamente - e retirar-se dos sectores que não lhe dizem respeito. O estado não deve fazer negócios. Deve fazer política. A distribuição equitativa da riqueza implica, ao mesmo tempo, uma política físcal justa, adequada e equitativa. Demasiados impostos não promovem a riqueza de um estado, nem de uma economia. Os impostos devem ser adequados, e para tal o estado não pode multiplicar-se em serviços, em empresas públicas desnecessárias, em negócios ruinosos que favorecem sempre as empresas - muitas vezes deficitárias mas que não vão à falência porque estão encostadas ao estado -.

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