terça-feira, 2 de outubro de 2012

Crescimento ou decrescimento? A proposta filosófica de Serge Latouche






No passado dia 25 de setembro, um conjunto de intelectuais espanhóis - Victoria Camps, Adela Cortina e José Luis Delgado - publicou no jornal El País um precioso documento de opinião, do Círculo de opinião cívica, sobre a realização de uma democracia de qualidade perante os tempos de fratura, de crise, que hoje vivemos: “Democracia de calidad frente a la crisis” versa o título. Sabemos que os nossos tempos são descarnados disso mesmo: de tempo, de tempo de qualidade, em que a memória e a demora possam ter efetivamente lugar. Tudo é novo e acelerado. Ouvir os outros, escutá-los, reconhecê-los enquanto mestres da justiça, como diria Ricoeur, parece hoje ser mais difícil do que nunca. A pretensa liberdade, a duras penas conquistada e a bem da segurança própria, parece hoje mais ameaçada e insegura do que nunca, mais fugaz e desenraizada, desvinculada de si e dos outros. Esquecemo-nos de muita coisa: do mundo, dos outros, da natureza ou, com Ortega y Gasset, da circunstância. A expensas de uma independência capaz, auto-suficiente, desembocámos na fragilidade, no tédio e no medo - não sabemos é bem de quem e do quê. A nossa vida parece controlada de fora, embora dentro de um mundo onde tudo se globalizou. Um mundo sem arredores. Sem fronteiras. Um mundo onde não sabemos bem quem somos e muito menos quem devemos respeitar, o que devemos respeitar e porquê. Um mundo onde tudo parece estar permitido e certo. A sociedade de informação, desinformou-nos, a sociedade do conhecimento, toldou-nos. Ambas aguardam serenas que o capitalismo passe despercebido, que as pessoas se submetam cada vez ao totalitarismo do consumo e à sua lógica de crescimento infinito, baluarte do liberalismo - não social, mas desleal. Todos acusamos o governo, todos acusamos as estruturas do poder e as suas instituições, mas esquecemo-nos de que a verdadeira revolução deve primeiro acontecer dentro de nós, ganhar sentido e sentidos de singularidade e depois, aí sim, expandir-se numa nova conceção e ação do bem comum, da partilha daquilo que nos é comum. 
No documento do Círculo de opinião cívica espanhol, que poderia bem ser português ou europeu, o primeiro e o último princípio de uma democracia de qualidade, assim verdadeiramente apelidada, pressupõem precisamente a busca e a partilha do bem comum. O primeiro: perseguir um bem comum: e o segundo: construir um quadro de valores comuns. O filósofo parece deixar de pregar no deserto e aos poucos vai fazendo com que o seu humanismo se adentre nos meandros da política económica ou, melhor, da economia que se serve da política para se servir. Para servir interesses privados, fins privados, que se servem do capital de todos para usufruto e lazer próprios. Sem ética, sem moral, sem atenção à circunstância. Sem responsabilidade pelas suas ações, venham elas do campo da economia ou da política, lugares sociais onde um pedido de desculpas assinado em nome próprio parece sarar quase tudo. Mas não sara. O povo tem voz, embora as massas nem sempre tenham verdadeiras alternativas, assumidas e respeitadas por todos, pensadas com cabeça, tronco e coração, contra a lógica de mercado em que estamos mergulhados, adormecidos. 
Porém, o que fazer contra todo este estado de coisas e de pessoas? Contra as crises, as fraturas, os deficits que não conhecemos bem e que nos parecem distantes e incontroláveis? 
Uma das primeiras atividades a promover é o pensamento. Pensar, ponderar, averiguar, discernir, pesar o que se passa de mau e o que pode vir a piorar, ou melhor, a melhorar tendo em conta a concorrência da nossa ação. O liberalismo económico é hoje o mal menor das sociedades. O seu capitalismo é maleável a todas as realidades políticas: democracias, oligarquias, ditaduras, imperialismos e afins. É como um polvo sem nome que manobra a sociedade e que nos inclui a todos nessa inversão. E nessa transmutação de todos os valores, inclui o significado da nossa vida, o sentido que lhe damos ou que neste caso esquecemos de lhe dar. Imersos na segurança do consumo, no supérfluo criado necessidade, deixamos de saber reconhecer o valor real das coisas, dos objetos e caímos na linearidade do progresso, na busca desenfreada de mais desenvolvimento, até mesmo do mais supérfluo existente. Ainda hoje passou uma reportagem na televisão sobre um hotel de luxo para cães inaugurado há poucos dias em Nova Iorque. Eu não tenho nada contra os animais, pelo contrário, mas o meu humanismo filosófico, embora não antropocêntrico, sentiu-se atingido perante aquela barbaridade, na falta de um adjetivo pior. Sinceramente. Seria bom crescermos um pouco em humanidade e vermos toda aquela informação com olhos de ver. Verdadeira injustiça, inumana contradição.  
Temos de facto ainda muito para aprender com a filosofia, com as humanidades e o seu saber. A filosofia não é dona da verdade absoluta, nunca o será; mas pelo menos ajuda-nos e auxilia-nos a perceber o seguinte: o humanismo não é uma alternativa às sociedades da ciência e da técnica, não é uma alternativa à tecnociência. O humanismo é um bem de primeira necessidade que deve, a todo o momento, tentar e conseguir examinar os pensamentos apoucados de uma visão economicista do homem. A filosofia não tenta somente responder à pergunta quem é homem?; tenta também responder à pergunta quem somos nós? e nessa demanda conseguir esclarecer os caminhos efetivos do bem comum, do que nos une e é nosso, além de “meu”. 
A propósito desta temática, terminei hoje de ler o livro Pequeno tratado do decrescimento sereno de Serge Latouche, leitura viva que aconselho vivamente. O livro é de uma clareza colossal sem deixar de ser pertinente ou im-pertinente. É conciso, sem deixar de colocar em causa a sociedade consumista de hoje do ponto de vista do humanismo. Tal como o autor defende, o decrescimento é um projeto político que põe em causa o capitalismo, mas não só. Vai além de Marx, criticando-o. Latouche diz que é impossível ser contra o capitalismo e a favor do desenvolvimento baseado na lógica de uma economia de mercado. Precisamente porque é a lógica do progresso técnico-científico que coloca em marcha e sustenta o capitalismo. Marx não se apercebeu disso e continuou a demanda iluminista de mais e melhor progresso, continuou o sonho de um homem liberto da produção e do trabalho. Não podemos ter desejos ou necessidades infinitas num mundo finito, num mundo que pode colapsar pela lógica errada do crescimento: "Os ganhos de produtividade foram sistematicamente transformados em crescimento do produto, e não em decréscimo do esforço." Não existe mais a ideia de um homem liberto do trabalho como queria Marx, existe sim o homem subjugado ao trabalho sedento de mais e mais consumo (todos, também me incluo).
Nesse caso, como invertemos esta sede desenfreada de mais capital? De crescimento infinito e seguro num mundo finito e inseguro? Latouche responde: "temos de voltar a reencantar o mundo" a respeitá-lo na sua unicidade. Temos de voltar a valorizar o mundo, a vida, as coisas e as pessoas, sem as banalizar. Pensar que a amizade e o conhecimento são bens comuns que devemos partilhar. São sabedoria prática e teórica comum que precisamos de promover para nosso próprio bem e para o bem da nossa comunidade e, acima de tudo, a bem da continuidade do nosso mundo. A Terra é finita, os nossos anseios e desejos infinitos. Por esse motivo e para terminar, Serge Latouche vai ao encontro das palavras de Kenneth Boulding, também economista, e diz o seguinte: 

“Num artigo de 1973, [Boulding] opõe a economia do cow-boy, em que a maximização do consumo se baseia na predação e na pilhagem dos recursos naturais, à economia do cosmonauta, “para a qual a Terra se tornou um veículo espacial único, não possuindo recursos ilimitados, seja para dela os retirar, seja para nela vazar os seus poluentes.” Quem acreditar que é possível o crescimento infinito num mundo finito, conclui ele, ou é louco ou economista.” 

O decrescimento é um projeto político, uma utopia humana concreta, porque humanista, que visa restabelecer os vínculos de sentido entre a natureza e os seres humanos e dos seres humanos entre si, procurando assim vencer “a banalidade económica do mal”. Ultrapassar o estilo de vida que o consumismo impõe, e ao qual de bom grado vamos aderindo, pressupõe pensar e avaliar, sóbria e serenamente, outras formas de habitar a realidade e, por sua vez, habitá-las. Uma leitura que obriga a uma releitura nem que seja de nós próprios.