Os resultados das eleições europeias são preocupantes, quase
todos nós já percebemos isso, pelo menos aqueles que ainda têm o bom senso de
se preocuparem com o mundo que os rodeia. São alarmantes, pelo menos parece-me,
a dois níveis: no primeiro, pela evidência do descrédito dos eleitores (na
maioria dos países europeus) em relação à classe política, simplesmente, calando
a sua voz. Quando o que está apenas em jogo na política, para a maioria das
pessoas, é a vida e não o mundo, invertendo a máxima arendtiana, de pouco nos
vale, pensamos, participar politicamente. Guardemos ainda (isto dito em tom de
ironia) o que podemos salvaguardar para nós próprios, pelo menos o nível da
sobrevivência. «Queremos as nossas vidas» dizia o lema contra a Troika que
circulou em Portugal durante vários meses. E é precisamente este nível de
sustentabilidade económica e do medo que temos que os outros roubem aquilo que
é nosso, que conduz ao segundo nível que nomeei também ele de alarmante: o do
crescente pensamento «cerquista» de guardar as nossas casas, as nossas nações,
os nossos iguais (os nossos) e com essa similitude assistir passivamente à ascensão
da extrema-direita em países-chave da União como a França e a Alemanha. «É
preciso que a França vá ao encontro daqueles que sofrem» dizia Marine Le Pen
nas anteriores eleições presidenciais francesas em 2012, as quais perdeu a
desfavor de Hollande, ficando ainda atrás de Sarkozy. Mas Le Pen sabe-o bem, e
todos percebemos, é preciso que «aqueles que sofrem» sejam franceses
e não de uma outra qualquer nacionalidade. A senhora sempre frisou isso muito
bem: a França é para os franceses que sofrem, não para um qualquer ser humano
que sofra. Mensagem recebida!
Logo ao início deste texto, partilhei convosco duas imagens
que me fizeram refletir muito durante todo este dia. A foto da gargalhada
desabrida de Marine Le Pen após a vitória do seu partido nas eleições de ontem
e a lição do Papa Francisco encostado ao muro da Cisjordânia hoje em Israel. Não
percebi bem se estava do lado de Israel ou do lado (do designado Estado-não
membro pela ONU) da Palestina. Pois é, saberemos nós de que lado estamos quando
estamos diante de um muro? De quanto mais tempo vamos precisar para perceber
que o universal, como dizia o nosso grande poeta Miguel Torga, é o local sem os
muros? Sem as fronteiras, sem as barreiras? A memória curta, a falta de
consciência histórica que hoje tantos criticaram, de que não nos lembramos da
nossa própria história, de que isto vai pelo mau caminho, está ali bem cimentada
naquele muro da Cisjordânia, que não deveria sequer existir. Tenhamos
esperança de que daqui a alguns anos esteja um pedaço dele ao lado do pedaço do
muro de Berlim que está em Portugal, precisamente no Santuário de Fátima.
Francisco deu-nos a lição que todos nós, os europeus, precisávamos, uns
perceberam a mensagem, outros não. Mensagem recebida!
Há bem pouco tempo vi o filme dedicado à vida de Ghandi, no
qual, no final, ele diz muito simplesmente que a verdade acaba sempre por se
revelar historicamente. Vem ao de cima! Por muito sangrenta que seja a guerra, por muito
doloroso que seja o mal, o bem acaba sempre por manifestar-se, na sua pequena
clareira, ou melhor diria, na sua brecha. É preciso admitir essas brechas no discurso
político, é preciso que elas nele irrompam e que o desconstruam se tal for
necessário. Até John Rawls, um dos mais incontornáveis filósofos políticos do
século XX, o admitia. É preciso que onde a razão pública falha, isto é, onde ela não chega ou alcança,
outros discursos como o religioso, o poético ou o artístico, tenham ainda uma última
palavra a dizer. Por isso, relembrava Rawls, Lincoln lançava quase sempre mão
de textos das Escrituras para se posicionar francamente contra a escravatura
que dizia ser desumana. Ninguém deveria viver simplesmente para sobreviver. Ninguém deveria fazê-lo. Mas alguns fazem-no e até voluntariamente. Assim e enquanto não percebermos que na política o que está
em jogo é o mundo e não a vida, agora sim com Hannah Arendt, o preço que
pagamos por essa dedicação única à sobrevivência será certamente alto. Será certamente o
preço da própria vida, que não têm preço, mas sim dignidade. Mensagem recebida?