A conquista do filósofo, Giorgio de Chirico
(Depois de alguns meses como bloguista, partilho hoje convosco um texto sobre Adela Cortina. Ainda não a tinha referido nas minhas lides cibernéticas. Este texto é fruto da minha intervenção no Colóquio Crise e Civilidade que se realizou dia 29 de março de 2012 na FLUP)
Da justiça como autonomia
O conceito e a conceção de civilidade de Adela Cortina
“Mudam-se os tempos, desnudam-se as
vontades”.
É
este o mote camoniano de Mia Couto n’O
último voo do flamingo. Palavras poéticas que elucidam, logo à partida, a
fragmentação entre o pensamento e a ação, ou para dizê-lo já com Adela Cortina,
entre as filosofias kantianas e um povo hobbesiano ou até menos hobbesiano do
que alguma vez Thomas Hobbes pensara. Nas palavras de Paula Pereira, em diálogo
com Hölderlin, “É quando o mundo se torna mais problemático, é quando o nosso
mundo perde sentido e consistência, que a filosofia recomeça. A filosofia nasce
especialmente em tempos de desamparo.” A situação crise afeta política, economia,
cidadania, civilidade, vontades e vontade. Autonomias que se desnudam numa acrasia crísica comum, cujo espaço-tempo
dá que pensar à filosofia munida do seu mais geminado conceito: o conceito de
crítica. Crítica das instituições e das pessoas na medida da justiça. Na medida da humanidade.
Da justiça
O
conceito e as conceções de justiça multiplicam-se através do poder das ideias.
Advindas dos vários gabinetes e debates académicos, cuja raiz política é fruto
da República platónica, elas bem
ditam o que deve ser a justiça na tríade liberdade-distribuição-igualdade. Um
dos exemplos contemporâneos mais férteis dessa idealização é a obra Uma Teoria da Justiça de John Rawls. O
grande objetivo de Rawls é a fundamentação de uma “sociedade bem ordenada”
assente em princípios corretos, válidos para qualquer político, juíz ou
cidadão. Progressivamente entendida, a dinâmica das instituições tornará mais
justa a prática da cidadania ao inspirar cidadãos menos egoístas e
desinteressados de si mesmos.
Para tal servirá a ficção ou a hipótese da posição original:
“A posição original é definida de tal
forma que representa um status quo no
qual quaisquer acordos alcançados são justos. É uma situação em que as partes
estão representadas igualmente como pessoas morais e o resultado não é
condicionado por contingências arbitrárias ou pelo equilíbrio relativo das
forças sociais.”
E a imaginada posição serve para estabelecer a diferença
entre 1. as doutrinas compreensivas de bem comum (que todas as pessoas
reconhecem num determinado projeto de vida, na sua profissão ou religião por
exemplo); e 2. a
compreensão universal da ideia de justiça a promover pelas distintas
instituições sociais. A favor da neutralidade de justificação do que é justo
suspende-se a vida boa à maneira da êpoche
husserliana. E assim perante esta suspensão e distinção, sobretudo contra elas,
pergunto: Não será a justiça a virtude que melhor expressa a ligação entre a
bondade e a inteligência? Não é ela o maior dos bens? Porquê submetê-la somente
ao correto funcionamento das instituições sociais, transformando o direito na
tarefa primordial da filosofia?
Antes das respostas, apresento os dois princípios da justiça
de Rawls: 1. princípio de liberdades fundamentais para todos (equal liberty), e 2. princípio da
igualdade de oportunidades o qual pressupõe o princípio da diferença (difference principle). Este segundo
princípio expressa-se numa bipartição de objetivos: a) igualdade de acesso aos mesmas
cargos e benefícios e b) igualdade distributiva dos bens económicos, mormente
rendimentos e riquezas. Estes dois princípios da justiça surgem quando as
partes da posição original se sujeitam e pactuam sob o “véu de ignorância”, ou
seja, no desconhecimento em relação à sua vindoura posição social.
Relembrando Max Weber, a ideia de justiça de Rawls responde
ao apelo de uma ética da convicção, deontológica, desinteressada do contexto e
da sua contaminação. Uma ética sem moral, diria Adela Cortina, distante da
ética da responsabilidade, da ponderação entre os meios e os fins e das suas
previsíveis consequências. Rawls pretende precisamente tornar a filosofia moral
algo não-avesso à prática e à retórica políticas, tornando esta última mais
intelectual e inteligente. Contudo, essa demanda acaba por colocar a ética
contra a própria moral fechando-a numa reflexão transcendental das instituições radicalmente distante das nossas
conceções morais, em última análise, de nós próprios.
Ficamos
assim perante o dilema: “Rawls e para além de Rawls”. É este o título
que Amartya Sen dá a um dos capítulos da obra A ideia de justiça que dedica a John Rawls. No entanto, a sua
argumentação parte desde logo de um paradoxo, à partida, irreconciliável: o da
relação entre a institucionalização transcendental da justiça e a sua
realização comportamental. A pergunta à qual Sen diz ser imperativo responder
não é a da condição de possibilidade a
priori da justiça. É a da capacidade ou das capacidades que estão em jogo
na redução do seu contrário: a injustiça. O juízo comparativo valerá então mais
do que a posição original e a sua ficção. A circunstância que se pondera e
critica valerá mais do que a teoria que se deseja. De facto, posso saber na
ponta da língua o que é a posição original, a equidade, a liberdade, a
igualdade, a justiça, mas sem realização crítica desse saber jamais conseguirei
responder à pergunta fulcral de Sen: afinal, como podemos reduzir a injustiça?
A métrica da igualdade social, examina Sen em relação a
Rawls, não pode centrar-se apenas na distribuição de rendimentos e riquezas.
Como avalia João Cardoso Rosas sobre este tema: “o essencial não é a quantidade
de dinheiro que se possui, mas o facto de isso proporcionar - ou não - o acesso
ao que é essencial à vida humana num contexto específico e dependente de uma
série de factores diferentes, como o ambiente natural, as tradições culturais e
religiosas, etc.”
É preciso aproximar pelo exame e pela crítica, capacidades
fundamentais, instituições e pessoas, inteligência e bondade, e não apenas
ficcionar essa realização, pois tal como advoga Sen “perguntar como vão as
coisas e indagar se poderiam ser melhoradas, [é] uma parte integrante da
demanda da justiça a que não se poderá escapar e que, aliás, deverá ser
constante.” Michael Sandel defende-o também: “a justiça não tem apenas que ver com a forma
certa de distribuir coisas. Tem igualmente que ver com a forma certa de
valorizar as coisas.”
Da justiça como autonomia
Em
2001 Adela Cortina publica a obra Alianza
y contrato: política, ética y religión. Nela estabelece, com vigor
filosófico, a relação entre uma ética de mínimos, portanto cívica, e uma ética
de máximos, configuradora do bem comum.
“A ética cívica é o conjunto de
valores e normas que partilham os membros de uma sociedade pluralista, sejam
quais forem as suas concepções de vida boa, os seus projectos de vida feliz.”
“O cumprimento da ética cívica pode exigir-se moralmente à sociedade (…). As
éticas de máximos não podem ser objecto de exigência numa sociedade, apenas de convite.”
Cortina assume uma posição de relação mútua e, por sua vez,
de não absorção entre a ética de mínimos e a ética de máximos. Ou para dizê-lo
com Jonh Rawls entre a ideia “universalizada” de justiça e as distintas
doutrinas compreensivas do bem comum. Uma não pode jamais subsumir a outra a
bem da vida democrática e da vida circunstanciada,
ou para dizê-lo com Aristóteles, da vida feliz. Por um lado, “os mínimos alimentam-se
dos máximos”, ou seja, já inserido numa determinada comunidade, o cidadão deve
responder às exigências da justiça, saber que esta mais do que um princípio é
um valor, um bem. Por outro lado, “os máximos têm de purificar-se a partir dos
mínimos.” Pensemos no caso do fundamentalismo religioso que faz coartar,
através da ação violenta, o princípio incondicionado da humanidade. Não se
purifica neste último e, portanto, perpetua a intolerância e a violência. E
Cortina é clara neste ponto: ética de minímos e ética de máximos não podem ser autosuficientes. Se o forem acabam por
“engolir o homem” e consequentemente a humanidade. Volvidos seis anos após a
publicação de Alianza y Contrato,
Adela Cortina escreve Ética de la razón
cordial e como veremos, pela epígrafe abaixo citada, a sua conceção de
civilidade não se centrará apenas na diferenciação entre ética de mínimos e
ética de máximos. Recentrar-se-á na configuração humana do humano, ou seja, na
forja ou inauguração do caracter. E diz o seguinte:
“A ética
cívica foi-se constituindo como o conjunto de valores e princípios éticos que
uma sociedade moralmente pluralista partilha e que permite aos seus membros
construir a vida juntos.
Era - e é - a ética das pessoas enquanto cidadãs,
comprometidas na vida de uma comunidade política da qual devem ser
protagonistas indiscutíveis. (…)
Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos, e
nunca instrução em princípios políticos, por muito que pertençam a
constituições democráticas e por muito que se explique a história através da
qual se geraram tais constituições.”
Sublinho: “Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos”.
O importante não é somente averiguar a justiça das ações levadas a cabo pelos
seres humanos, é preciso saber ver se o sujeito que as protagoniza é um ser
humano justo, com um caracter bem construído e, por sua vez, educado. Voltamo-nos assim para questão do êthos como morada do ser, como toca diria Martin Heidegger, cuja
“decoração” é inteiramente nossa e deverá ser integralmente autónoma.
E por esse motivo nomeio a
justiça de autonomia.
Explico agora melhor essa
nomeação. Em 1986, no prólogo dedicado à obra Ética mínima de Adela Cortina, José Luis Aranguren apontava às
éticas procedimentais da justiça, de Kant a Habermas passando por John Rawls, a
seguinte limitação: “À ética
intersubjectiva, deve conjugar-se a ética
intrasubjectiva, ou seja, o diálogo que cada um de nós somos.”
Se aprendemos com Aristóteles, e
antes dele com o mestre Platão, a radicalidade do diálogo que devemos reavivar
constantemente conosco próprios, ao jeito de exame diria antes Sócrates: “uma
vida não examinada não vale a pena ser vivida”, a ética deve então ser prefácio
da política e não o contrário. Em todo o caso, continuamos a insistir na
inversão do percurso moral do ser humano ao mundo e valoramos apenas a ética
como ética social dialógica.
Colocamos a educação para a cidadania, por exemplo, antes da educação moral. E
José Luis Aranguren tem razão, embora uma razão intempestiva: antes de o ser
humano ser um diálogo inter, um
diálogo com os outros, deve ser um diálogo intra,
num pensar que examina o seu caracter e, por sua vez, o cria, inaugura e elenca
aos mais próximos. Aranguren vê com acutilância o perigo de dissolução do
fenómeno moral no direito e na política, reduzindo-se assim a ideia de valor
aos princípios éticos e o papel inédito do sujeito em sociedade à
responsabilidade das instituições.
Para concluir, refiro-me à
definição de autonomia da vontade de
Immanuel Kant na Fundamentação da
metafísica dos costumes:
“autonomia
da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua
lei. O princípio da autonomia é: não escolher senão de modo a que as máximas da
escolha estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo como lei universal.”
A ética é primordialmente uma questão de
atitudes. Kant tinha consciência desse factum
da razão. O “querer mesmo”, a vontade, deve ajuizar e agir em sintonia com a
“lei universal”. A autonomia pessoal deve ser capacidade autolegisladora de
universalização. Deverá sê-lo. Sobretudo para aproximar cada vez mais autonomia
e justiça, pessoa e humanidade. Realizar a lei moral dentro e fora de mim. No fundo, temos de viver sempre
nas proximidades do seguinte dilema: “direito e política parecem bastar para
regular as relações sociais, sem necessidade de perguntar à filosofia se são ou
não humanas.” Este dilema é lançado por Adela Cortina em
tom de suspeita, mas remete-nos também para a dimensão da esperança, da
colheita. Indagar pela justiça é perguntar pela humanidade do humano, é
perguntar por si próprio e pelo outro nas fronteiras que nos separam da
desumanização. E mais do que perguntar, é fazer humanidade. Parafraseando
Ortega y Gasset “o tigre não pode destigrar-se, mas o ser humano pode
desumanizar-se” e para que tal não aconteça é preciso que Karl Jaspers tenha razão. E a tenha
sempre. É preciso que a filosofia seja perigosa, que incomode… E que o seja
munida do seu mais geminado conceito: o de crítica. Crítica constante em
relação “[às] convenções, [ao] hábito de julgar que o
bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, [à] vontade
ilimitada do poder, [ao] fanatismo das ideologias, [ao] compadrio dos
políticos.” É preciso indagar se as relações pessoais e sociais são ou não humanas, uma
reflexão que é constante, disse-o mais acima Amartya Sen, e cuja constância é a
bem da tensão entre liberdade e civilidade, autonomia e justiça.