Atena, Museu da Acrópole em Atenas, século V a.C.
Esta
reflexão é fruto do comentário à conferência proferida pela Professora Luísa
Neto da Faculdade de Direito da Universidade do Porto intitulada A Bioética como novo Direito Natural? A convite
do Grupo Filosofia e Espaço Público
do Instituto de Filosofia da FLUP aquando do 2.º Ciclo de conferências Filosofia e condição tecnológica, a
Professora suscita e discute acerca da bioética como novo direito natural e nesse
horizonte colocou-nos a seguinte questão: “nem tudo o que não é punido é lícito, nem
tudo o que não é proibido é lícito: devemos fazer algo apenas porque é
possível?”
Esta
afirmação/questão da Professora Luísa Neto sugere, a meu ver, uma imagem e um
texto, ambos profundamente filosóficos. A imagem é a da deusa Atena no Museu da Acrópole
de Atenas e o texto “A proveniência da arte e a determinação do pensar” (www.martin-heidegger.net) da autoria
de Martin Heidegger. Trata-se de uma conferência proferida pelo filósofo em
1967 na Academia de Artes e Ciências de Atenas, uma reflexão sobre a deusa
Atena, no seu papel de conselheira, iluminadora e guardiã da arte na Grécia
antiga. Sabemos que Martin Heidegger foi um filósofo bastante dedicado à
pergunta pela técnica e esta tem uma fulcralidade, diria ontológica, no seu
pensar. Assim o reconhece na entrevista dada à revista Der Spiegel, “já só um deus nos pode ainda salvar” (www.martin-heidegger.net), publicada
postumamente em 1976.
A reflexão do filósofo sobre
a técnica assegura pensá-la enquanto daimón do humano e avaliá-la
como força violenta e subjugadora do seu “fazer” face à natureza. A techné grega
é por si reconhecida como poder criador no sentido daquilo que impera no mundo
como obra humana distinta do brotar da natureza - da phusis. Somente a
técnica moderna, diz Heidegger, surge à filosofia como “dar que pensar”, pensar
que não decorre do poder criador do humano enquanto tal, mas da sua
incapacidade em pensar as suas fronteiras, os limites do poder criacional. O
carácter inquietante do ser humano prende-se com a insondabilidade da sua ação
no poder ou não poder saber aquilo que “faz” enquanto criação própria. O
imperar do logos - palavra, cálculo, ordem - face à
natureza, é o semblante moderno que pretende sondar toda a “brutalidade” da
matéria viva e torná-la sua, conhecida, manipulável, comprovável.
Do mesmo modo que o
filósofo pensa a técnica como aplicabilidade do método científico, e se demora
nesse pensar, também nós hoje, um pouco distantes de Heidegger e ainda mais de
Atena nos colocamos a pensar sobre as possibilidades e fronteiras do conhecer
e, sobretudo, do agir humanos: “devemos
fazer algo apenas porque é possível?” Não haverá um limite que se interponha
entre a criação, ação humanas e a natureza, ou seja, entre aquilo que criamos e
o que não precisa das mãos humanas para acontecer? Por último: estaremos
nós conscientes desse limite, desse “marco-fronteira” entre a techné e a phusis?
Por esse motivo, escolhi Heidegger
e a deusa Atena para poder pensar acerca do caracter inquietante - unheimlich - do ser humano e por este ser
também, a meu ver, o dilema fulcral da bioética: conseguir estabelecer a
fronteira entre o cuidado e a inquietude do ser, na autonomia que, por sua vez,
e enquanto princípio primeiro da bioética, é
humanitas do humano enquanto tal e terá de o ser. Sabemos que o impulso da
criação científica e técnológica é sempre mais rápido, mais funcional do que o
próprio pensar. Não guarda responsabilidade perante a fronteira que delimita o
que é criado por nós e o que não precisa de nós para existir. Enquanto não
formos capazes de meditar com cuidado sobre essa fronteira, através do pensar,
a inquietude do ser tomará sempre conta de nós e a autonomia cederá. Se cede a
autonomia, perde-se a humanitas do
humano, a única capaz de conduzir o homem à verdadeira habitação do ser.
Em 1947 Heidegger salienta na sua Carta sobre o humanismo o seguinte:
“O pensar trabalha na edificação da casa do ser; é
como tal casa que a juntura do ser dispõe, sempre de acordo com o destino, a
essência do homem para morar na verdade do ser. Este morar é a essência do
“Ser-no-mundo”.
(…) Um dia seremos mais capazes de pensar o que é a
“casa” e “habitar” a partir da essência do ser adequadamente pensada.”
Destaco desta epígrafe
três verbos cruciais na linguagem heideggeriana: pensar, habitar e ser e tento
relacioná-los de um modo mais prosaico, vivencial, diria. O pensar é um meditar
que nos permite habitar a casa do ser, mas não imediatamente nem totalmente… A
meditação é um trabalho que leva tempo, toma o nosso tempo, e nem todos estamos
dispostos a dá-lo ao ser que permite habitar o mundo e fazer dele a nossa casa.
Volto então ao texto inicial “A proveniência da arte e a determinação do
pensar”. E volto ao seu fim, não ao início que guardarei para mais tarde. A
reflexão de Heidegger neste texto finda com um conceito bem conhecido do seu
pensamento e de quem a ele se dedica: aletheia.
A-letheia significa em grego o não-encoberto,
ou seja, aquilo que se desvela, mas que sempre necessita do velamento e da
obscuridade para existir, para surgir, para brotar. Heidegger associa à ideia
grega de a-letheia a ideia de
verdade: “todo o pôr-a-descoberto requer sempre o estar encoberto.” E associa
também às suas palavras um dito de Heraclito: “àquilo que brota de si mesmo
é-lhe próprio encobrir-se.”
Aqui se esconde o grande
impensado da era moderna e do seu mundo como imagem. O que importa nos alvores
da Modernidade, diz Heidegger, é desvelar tudo, desencobrir tudo, fazer do
mundo uma ou várias imagens passíveis de cálculo e de codificação. Não há lugar
para a a-letheia grega e muito menos
para a voz conselheira dos deuses. Tudo é presentificado pelo sujeito do
conhecimento e deve sê-lo. O mundo apresenta-se como adequação e não como
revelação do ser ao homem. Este revelar, diriam os gregos, pressupõe um
esconder. E, por conseguinte, volto à deusa Atena. Atena é para os gregos a
deusa da sabedoria em três momentos chave. Num primeiro momento, Atena
aconselha os homens nas suas mais diversas criações: da arte à política
passando pela filosofia. A sua palavra conselheira prevê o caminho ainda não
havido, alumia, clareia as veredas do ser na busca criacional. O seu olhar
meditativo ilumina e dá ser ao que ainda não está criado, ao que somente
pré-existe no homem. O seu olhar é o olhar da coruja que de noite ilumina,
clareia o caminho dos homens, fá-los ver mais longe e ir além… Mas não muito
além de si próprios, alerta Heidegger:
“o seu olhar meditativo
não contempla apenas a figura invisível das possíveis obras humanas. O olhar de
Atena descansa, sobretudo, no que permite a partir de si desdobrar-se nas
coisas que não necessitam de ser produzidas pelo ser humano para se tornarem
presentes.”
Se se atender bem à imagem da deusa Atena no museu da Acrópole olhamos a
sua postura como a daquela que medita, que reflete perante a “pedra-marco”, a
fronteira. Atena auxilia os homens nas suas façanhas e criações culturais, mas
alerta-os também para o risco de se ultrapassarem, de pisarem a fronteira, o
marco. O limite que estabelece a partir de si mesmo “o que não necessita de ser
produzido pelo ser humano para se tornar presente”, para vir à luz. No mundo
grego existe uma co-pertença entre techné
e phusis, arte e natureza, aquilo que
pode ser criado e o que é espontâneo, o dar-se. Ambas co-pertencem-se e assistem
serenamente ao desvelamento do ser. Muitos poetas, entre os quais o poeta
Ésquilo, sabem do poder alumiador e secreto de Atena. Ésquilo coloca as
seguintes palavras na boca da deusa: “Só eu, entre os deuses, conheço a chave
da casa em que, encerrado e selado, o raio repousa”. Como filha de Zeus, Atena
sabe onde o pai guarda o raio, mas nunca fez uso dele. Sabe do limite que se
impõe e conserva-o. Sabe que seria incapaz de o controlar, tal como Pandora não
conseguiu controlar a saída dos males da caixa oferecida pelos deuses a
Epimeteu.
No entanto, como nos
comportamos nós hoje no mundo dito científico? Guardamos a mesma sabedoria grega
do limite ou ultrapassamo-la? Para responder a esta pergunta Heidegger recorre
às palavras de Nietzsche: “O que caracteriza o nosso século XIX não é o triunfo
da ciência, mas o triunfo do método científico sobre a ciência.” Heidegger
explica: “o método é o projecto antecipativo do mundo, que fixa o rumo
exclusivo da sua investigação possível. (…) O da total calculabilidade de tudo
o que é acessível e comprovável mediante experimentação.” Este cálculo-ordem
inclui não só o mundo, mas o próprio ser humano cuja custódia e configuração é
“factor de perturbação” e de clausura, clausura de si em si mesmo. O pensar não
toma parte nos caminhos do conhecer e do produzir. O ocaso do Ocidente enquanto
progredir do método científico expressa-se no modo de antecipar e representar o
curso do mundo e do homem.
A bioética é hoje um
esforço do pensar em relação ao conhecer e ao produzir da ciência, as ações e
consequências da sua investigação. Uma ponte meditativa entre “os conhecimentos
biológicos e os valores humanos” (Van Rensselaer Potter). A bioética alerta,
através de diversas áreas do saber tais como a filosofia ou o direito, para o
progredir da ciência enquanto método instrumentalizado e provocador do ser, e
para a sua prentensa neutralidade. Heidegger desvirtua, destrói o papel
privilegiado do ser humano no universo e tenta colocá-lo em harmonia, em
cuidado para com o ser. Sorge em
alemão quer dizer, simultaneamente, cuidado e inquietude e, por vezes, o ser
humano não quer apenas ser e estar-no-mundo enquanto guardião zeloso do
“aparecer”, do “desocultar” do ser. Quer que ele apareça sempre, invoca ao ser
para que este se produza interminavelmente e, por isso, provoca-o,
ultrapassando os seus próprios limites, ou seja, as fronteiras humanas da ação
e da invenção. Estará a
bioética preparada para responder a esta provocação do ser? Para iluminar através
do pensar a relação entre o cuidado e a inquietude? Para marcar a sua
fronteira?
São mais as perguntas do que as
respostas é um facto.
Termino com as palavras de Margaret
Thatcher reavivadas há pouco tempo no filme The
Iron Lady realizado por Phyllida Lloyd e protagonizado por Meryl Streep.
Questionada pelo seu médico de família sobre o seu estado de saúde na universal
pergunta: como é que se sente? Thatcher suspira e medita: “hoje em dia as
pessoas apenas sentem, não pensam.” E continua: “o grande problema do nosso
tempo é que somos governados por pessoas que apenas se preocupam com
sentimentos e não por pessoas que acreditam em pensamentos e ideias.” O médico
replica: “Nesse caso, Margaret, o que é que pensa?” Ela responde:
“Cuidado com os pensamentos, eles transformam-se em palavras.
Cuidado com as palavras, elas transformam-se em ações.
Cuidado com as ações, elas tornam-se um hábito.
Cuidado com o hábito, ele forja o caracter.
Cuidado com o caracter, pois ele é o seu destino.
Somos o que pensamos.”
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