terça-feira, 2 de outubro de 2012

Crescimento ou decrescimento? A proposta filosófica de Serge Latouche






No passado dia 25 de setembro, um conjunto de intelectuais espanhóis - Victoria Camps, Adela Cortina e José Luis Delgado - publicou no jornal El País um precioso documento de opinião, do Círculo de opinião cívica, sobre a realização de uma democracia de qualidade perante os tempos de fratura, de crise, que hoje vivemos: “Democracia de calidad frente a la crisis” versa o título. Sabemos que os nossos tempos são descarnados disso mesmo: de tempo, de tempo de qualidade, em que a memória e a demora possam ter efetivamente lugar. Tudo é novo e acelerado. Ouvir os outros, escutá-los, reconhecê-los enquanto mestres da justiça, como diria Ricoeur, parece hoje ser mais difícil do que nunca. A pretensa liberdade, a duras penas conquistada e a bem da segurança própria, parece hoje mais ameaçada e insegura do que nunca, mais fugaz e desenraizada, desvinculada de si e dos outros. Esquecemo-nos de muita coisa: do mundo, dos outros, da natureza ou, com Ortega y Gasset, da circunstância. A expensas de uma independência capaz, auto-suficiente, desembocámos na fragilidade, no tédio e no medo - não sabemos é bem de quem e do quê. A nossa vida parece controlada de fora, embora dentro de um mundo onde tudo se globalizou. Um mundo sem arredores. Sem fronteiras. Um mundo onde não sabemos bem quem somos e muito menos quem devemos respeitar, o que devemos respeitar e porquê. Um mundo onde tudo parece estar permitido e certo. A sociedade de informação, desinformou-nos, a sociedade do conhecimento, toldou-nos. Ambas aguardam serenas que o capitalismo passe despercebido, que as pessoas se submetam cada vez ao totalitarismo do consumo e à sua lógica de crescimento infinito, baluarte do liberalismo - não social, mas desleal. Todos acusamos o governo, todos acusamos as estruturas do poder e as suas instituições, mas esquecemo-nos de que a verdadeira revolução deve primeiro acontecer dentro de nós, ganhar sentido e sentidos de singularidade e depois, aí sim, expandir-se numa nova conceção e ação do bem comum, da partilha daquilo que nos é comum. 
No documento do Círculo de opinião cívica espanhol, que poderia bem ser português ou europeu, o primeiro e o último princípio de uma democracia de qualidade, assim verdadeiramente apelidada, pressupõem precisamente a busca e a partilha do bem comum. O primeiro: perseguir um bem comum: e o segundo: construir um quadro de valores comuns. O filósofo parece deixar de pregar no deserto e aos poucos vai fazendo com que o seu humanismo se adentre nos meandros da política económica ou, melhor, da economia que se serve da política para se servir. Para servir interesses privados, fins privados, que se servem do capital de todos para usufruto e lazer próprios. Sem ética, sem moral, sem atenção à circunstância. Sem responsabilidade pelas suas ações, venham elas do campo da economia ou da política, lugares sociais onde um pedido de desculpas assinado em nome próprio parece sarar quase tudo. Mas não sara. O povo tem voz, embora as massas nem sempre tenham verdadeiras alternativas, assumidas e respeitadas por todos, pensadas com cabeça, tronco e coração, contra a lógica de mercado em que estamos mergulhados, adormecidos. 
Porém, o que fazer contra todo este estado de coisas e de pessoas? Contra as crises, as fraturas, os deficits que não conhecemos bem e que nos parecem distantes e incontroláveis? 
Uma das primeiras atividades a promover é o pensamento. Pensar, ponderar, averiguar, discernir, pesar o que se passa de mau e o que pode vir a piorar, ou melhor, a melhorar tendo em conta a concorrência da nossa ação. O liberalismo económico é hoje o mal menor das sociedades. O seu capitalismo é maleável a todas as realidades políticas: democracias, oligarquias, ditaduras, imperialismos e afins. É como um polvo sem nome que manobra a sociedade e que nos inclui a todos nessa inversão. E nessa transmutação de todos os valores, inclui o significado da nossa vida, o sentido que lhe damos ou que neste caso esquecemos de lhe dar. Imersos na segurança do consumo, no supérfluo criado necessidade, deixamos de saber reconhecer o valor real das coisas, dos objetos e caímos na linearidade do progresso, na busca desenfreada de mais desenvolvimento, até mesmo do mais supérfluo existente. Ainda hoje passou uma reportagem na televisão sobre um hotel de luxo para cães inaugurado há poucos dias em Nova Iorque. Eu não tenho nada contra os animais, pelo contrário, mas o meu humanismo filosófico, embora não antropocêntrico, sentiu-se atingido perante aquela barbaridade, na falta de um adjetivo pior. Sinceramente. Seria bom crescermos um pouco em humanidade e vermos toda aquela informação com olhos de ver. Verdadeira injustiça, inumana contradição.  
Temos de facto ainda muito para aprender com a filosofia, com as humanidades e o seu saber. A filosofia não é dona da verdade absoluta, nunca o será; mas pelo menos ajuda-nos e auxilia-nos a perceber o seguinte: o humanismo não é uma alternativa às sociedades da ciência e da técnica, não é uma alternativa à tecnociência. O humanismo é um bem de primeira necessidade que deve, a todo o momento, tentar e conseguir examinar os pensamentos apoucados de uma visão economicista do homem. A filosofia não tenta somente responder à pergunta quem é homem?; tenta também responder à pergunta quem somos nós? e nessa demanda conseguir esclarecer os caminhos efetivos do bem comum, do que nos une e é nosso, além de “meu”. 
A propósito desta temática, terminei hoje de ler o livro Pequeno tratado do decrescimento sereno de Serge Latouche, leitura viva que aconselho vivamente. O livro é de uma clareza colossal sem deixar de ser pertinente ou im-pertinente. É conciso, sem deixar de colocar em causa a sociedade consumista de hoje do ponto de vista do humanismo. Tal como o autor defende, o decrescimento é um projeto político que põe em causa o capitalismo, mas não só. Vai além de Marx, criticando-o. Latouche diz que é impossível ser contra o capitalismo e a favor do desenvolvimento baseado na lógica de uma economia de mercado. Precisamente porque é a lógica do progresso técnico-científico que coloca em marcha e sustenta o capitalismo. Marx não se apercebeu disso e continuou a demanda iluminista de mais e melhor progresso, continuou o sonho de um homem liberto da produção e do trabalho. Não podemos ter desejos ou necessidades infinitas num mundo finito, num mundo que pode colapsar pela lógica errada do crescimento: "Os ganhos de produtividade foram sistematicamente transformados em crescimento do produto, e não em decréscimo do esforço." Não existe mais a ideia de um homem liberto do trabalho como queria Marx, existe sim o homem subjugado ao trabalho sedento de mais e mais consumo (todos, também me incluo).
Nesse caso, como invertemos esta sede desenfreada de mais capital? De crescimento infinito e seguro num mundo finito e inseguro? Latouche responde: "temos de voltar a reencantar o mundo" a respeitá-lo na sua unicidade. Temos de voltar a valorizar o mundo, a vida, as coisas e as pessoas, sem as banalizar. Pensar que a amizade e o conhecimento são bens comuns que devemos partilhar. São sabedoria prática e teórica comum que precisamos de promover para nosso próprio bem e para o bem da nossa comunidade e, acima de tudo, a bem da continuidade do nosso mundo. A Terra é finita, os nossos anseios e desejos infinitos. Por esse motivo e para terminar, Serge Latouche vai ao encontro das palavras de Kenneth Boulding, também economista, e diz o seguinte: 

“Num artigo de 1973, [Boulding] opõe a economia do cow-boy, em que a maximização do consumo se baseia na predação e na pilhagem dos recursos naturais, à economia do cosmonauta, “para a qual a Terra se tornou um veículo espacial único, não possuindo recursos ilimitados, seja para dela os retirar, seja para nela vazar os seus poluentes.” Quem acreditar que é possível o crescimento infinito num mundo finito, conclui ele, ou é louco ou economista.” 

O decrescimento é um projeto político, uma utopia humana concreta, porque humanista, que visa restabelecer os vínculos de sentido entre a natureza e os seres humanos e dos seres humanos entre si, procurando assim vencer “a banalidade económica do mal”. Ultrapassar o estilo de vida que o consumismo impõe, e ao qual de bom grado vamos aderindo, pressupõe pensar e avaliar, sóbria e serenamente, outras formas de habitar a realidade e, por sua vez, habitá-las. Uma leitura que obriga a uma releitura nem que seja de nós próprios. 

sábado, 11 de agosto de 2012

Antes da Partida

   Paula Rego, À janela, 1997


"Nas estações de comboios do centro,

por onde passam os do norte a caminho do sul, os do sul

a caminho do norte, os de leste para oeste e

os de oeste para leste, e todos em toda

e nenhuma direcção, vendem-se jornais de todas

as línguas possíveis. Volto os escaparates

para ver os títulos, toco nos papéis, entre

os bons e os maus, os ricos e os pobres, os que

trazem suplementos e os que se limitam a poucas

páginas de informação e anúncios: e cada um

desses jornais é um mundo, vidas a que nunca terei acesso, 

histórias que começam e acabam numa coluna

interior, em meia dúzia de linhas. Sei, no entanto

que o amor e a morte, apesar das línguas diferentes, 

são os mesmos em cada uma dessas notícias; que

as tragédias e as alegrias se contam com o mesmo

estilo, e só o título dá ênfase à emoção

que desaparece com a leitura. Não preciso, por isso,

de ler todos os jornais, de uma ponta à outra, 

nem de saber todas as línguas do mundo, para conhecer

a realidade do homem. No entanto, ao rodar 

os escaparates, sem olhar de facto o que eles mostram, 

apenas para misturar emoções e frases, palavras

e imagens, faço rodar um dia inteiro, sem saber porquê

ou apenas porque é esse, finalmente, 

o movimento do mundo."


Nuno Júdice, O movimento do mundo, p. 120. 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Economia sem ética ou economia sem pessoas?



Sapatos, Vincent Van Gogh


Num artigo publicado no Jornal El País, intitulado “Economía sin ética", Adela Cortina acusa e critica o modelo moderno de economia empresarial, uma economia “sem pessoas”, que foi paulatinamente esquecendo a sua responsabilidade para com a sociedade afastando-se cada vez mais dela em prol do lucro, do consumo. Este parece ser hoje o único caminho feliz, conducente à boa vida, não à vida boa. E passamos do grande irmão ao grande engano…. Por sua vez, Cortina diz o seguinte e pergunta:  

“En el documento de la última cumbre del G-20, los líderes mundiales hacen una afirmación asombrosa: “Reconocemos la dimensión humana de la crisis”. Pero ¿es que ha existido alguna vez una actividad económica sin dimensión humana? ¿No es cierto que la economía ha de ayudar a construir una buena sociedad y, cuando no lo consigue, fracasa rotundamente, teniendo en cuenta que esa buena sociedad hoy ha de ser mundial?”

A bota que sempre nos quiseram calçar, aquela que pretendia maximizar a felicidade para o maior número de pessoas através dos bens materiais, da riqueza económica bem distribuída gastou-se, falhou. E hoje reconhece-se “a dimensão humana da crise”. Voltemos então às pessoas e esqueçamos a economia. A crise é bem mais profunda e incide precisamente no “modelo” de pessoas, na mentalidade que sempre lhes incutimos durante anos e que agora queremos transmutar. Por isso, e para além de uma economia sem ética, sem uma forma certa de distribuir coisas, devemos antes falar de uma economia sem pessoas, ou seja, sem uma forma certa de valorizar as coisas, sem capacidade para estabelecer a fronteira entre o necessário e o supérfluo, a boa vida e a vida boa. Tal como refere Adela Cortina, a economia tem por obrigação ajudar a construir uma boa sociedade, a emancipá-la, e não recorrer à redução, ao esvaziamento do pensar em prol da estandardização do ser humano, da própria sociedade esquecendo a responsabilidade. É esse o “modelo” filosófico, tão fácil de absorver, que está por detrás de uma economia de mercado. Libertar as pessoas de uma certa forma de obediência que as obrigue a pensar nos outros, em responsabilizar-se por eles, eclipsando-se do mundo. Já diz Zizek no seu livro Viver no fim dos tempos e di-lo mais ou menos assim: façam donativos para os meninos pobres de África, já que esse donativo ajudar-vos-á a não pensarem na causa efetiva da pobreza. Contribuam, mas não pensem, não apontem o dedo, essa crítica não vos levará a lado nenhum.  
É interessante que enquanto lia este artigo de Cortina que convosco partilho, estava ao mesmo tempo a reler o livro Justiça: fazemos o que devemos? de Michael Sandel. Um livro cujo tom reflexivo tenta enlaçar justiça e bem comum, direitos e deveres, ou se preferirem, economia e responsabilidade. Segundo Sandel devem existir sempre brechas tanto no discurso político quanto no discurso económico. A justiça como distribuição de bens deve ser colmatada pela visão de que a justiça é um bem, o maior dos bens, e não deve estar somente sujeita ao discurso legal ou legítimo dos direitos humanos e das suas distintas gerações. Essa brecha é alinhavada pela crítica e pelo empenho moral, os quais devem ser sempre parte integrante da pergunta pela justiça. À custa de tanto delegarmos as nossas decisões morais nos outros, temos vivido de facto muitos dramas pessoais. Esquecemo-nos de que a “costura” da justiça é singular, humana, pressupõe um cerzir que é só nosso e, portanto, insubstituível. Mas será que temos assim tanta margem de manobra, ou de ação, para sermos singulares? Humanos? Para decidir moralmente? Para ser pessoa, independentemente da política ou da própria economia? Em suma, será que sabemos fazer a coisa certa, apesar do errado que nos rodeia e consome? Consome no consumo?
 “Fazer a coisa certa”. É esse o dilema que Sandel nos propõe no início da obra Justiça: fazemos o que devemos? Inicia-a com a reflexão acerca do furacão Charley que se abateu sobre a Florida em 2004. “Após a tempestade vêm os abutres” rezava o USA Today. E expressava-o porque, após a tempestade, houve um aumento brutal na especulação dos preços: 23 mil dólares para retirar uma árvore do telhado de uma casa, 500 doláres por um quarto de hotel, onde o normal seria a cobrança de 40 doláres, entre outros episódios. Aqui não se fez a coisa certa. Independentemente do sofrimento e das necessidades das pessoas os preços aumentaram levando ao desespero e à ira pública de muitos. Indignação. Bem diz Aristóteles na Ética a Nicómaco que a ira é o exemplo paradigmático das emoções e o primeiro motor da justiça, ou seja, o despertar “cardíaco” e emocional perante a injustiça. Quem se aproveita desta especulação “não tem coração” perante o sofrimento das pessoas, apenas vê números e essa é a situação alarmante que hoje se perpetua: se os outros fazem porque é que eu não hei-de fazer? Não vale mais a pena sermos todos injustos, já que o mundo é já de si injusto? Economia sem pessoas?
Em todo o caso não precisamos de ir à Florida para exemplificar este distanciamento entre mercado livre e humanidade. Basta pensarmos no caso português quanto ao aumento constante do preço dos combustíveis. O governo português sabe que esta situação asfixia pessoas e empresas, mas nada pode fazer, diz. Alheia-se da situação com o argumento do Estado mínimo que tudo privatiza, enquanto guarda nos seus cofres as contribuições das gasolineiras, pagas por nós. Concorrência não existe, mas cartelização há muita e já todos nos apercebemos disso. Os bancos continuam a ter lucros exorbitantes, as gasolineiras também. E eles próprios o expressam embora sub-repticiamente: das pessoas eclipsemo-nos, até porque elas já se eclipsaram de si próprias. Perderam não só a sua casa (oikos), mas igualmente a sua morada (êthos). Tudo se globalizou e mundializou. E a singularidade estilhaçou-se. E essa é, a meu ver, a pior de todas as crises. A crise que afecta a nossa individualidade nos interstícios da globalidade. Que esquece e engole, por antonomásia, o homem comum. E não quero com isto dizer que o social não seja importante, mas se não formos capazes de a partir da nossa liberdade colocar as regras do jogo em jogo, criticá-las, a “choldra ignóbil”, para lembrar Eça, continuará a comandar-nos e comandará sempre.


domingo, 1 de abril de 2012

Poema Verniz - Mia Couto



Canção Meridional, Giorgio de Chirico



"No degrau da rua,
a moça pinta as unhas.

Dobrado em lua,
seu corpo tem a delicada intenção do ourives:
na decimal tela das mãos
inventa lábios
que o destino virá beijar.

Fadigosa obra,

tão incontáveis os dedos da vaidade.

A moça demora-se
mais que a derradeira luz
e as velhas passam e benzem-se,
limpando lembranças
de suas primeiras mãos.

Afinal, não é o corpo
o que a menina pinta.

O verniz vermelho,
como salpicados coágulos.
lhe amortalha o gesto.

Debaixo da tinta
uma morte se oculta:
a sua,
da menina tão menina
que nem precisava de ser linda."

sexta-feira, 30 de março de 2012

Da justiça como autonomia



A conquista do filósofo, Giorgio de Chirico


(Depois de alguns meses como bloguista, partilho hoje convosco um texto sobre Adela Cortina. Ainda não a tinha referido nas minhas lides cibernéticas. Este texto é fruto da minha intervenção no Colóquio Crise e Civilidade que se realizou dia 29 de março de 2012 na FLUP)



Da justiça como autonomia
O conceito e a conceção de civilidade de Adela Cortina 

“Mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades”.
É este o mote camoniano de Mia Couto n’O último voo do flamingo. Palavras poéticas que elucidam, logo à partida, a fragmentação entre o pensamento e a ação, ou para dizê-lo já com Adela Cortina, entre as filosofias kantianas e um povo hobbesiano ou até menos hobbesiano do que alguma vez Thomas Hobbes pensara. Nas palavras de Paula Pereira, em diálogo com Hölderlin, “É quando o mundo se torna mais problemático, é quando o nosso mundo perde sentido e consistência, que a filosofia recomeça. A filosofia nasce especialmente em tempos de desamparo.” A situação crise afeta política, economia, cidadania, civilidade, vontades e vontade. Autonomias que se desnudam numa acrasia crísica comum, cujo espaço-tempo dá que pensar à filosofia munida do seu mais geminado conceito: o conceito de crítica. Crítica das instituições e das pessoas na medida da justiça. Na medida da humanidade. 

Da justiça
O conceito e as conceções de justiça multiplicam-se através do poder das ideias. Advindas dos vários gabinetes e debates académicos, cuja raiz política é fruto da República platónica, elas bem ditam o que deve ser a justiça na tríade liberdade-distribuição-igualdade. Um dos exemplos contemporâneos mais férteis dessa idealização é a obra Uma Teoria da Justiça de John Rawls. O grande objetivo de Rawls é a fundamentação de uma “sociedade bem ordenada” assente em princípios corretos, válidos para qualquer político, juíz ou cidadão. Progressivamente entendida, a dinâmica das instituições tornará mais justa a prática da cidadania ao inspirar cidadãos menos egoístas e desinteressados de si mesmos.
Para tal servirá a ficção ou a hipótese da posição original

“A posição original é definida de tal forma que representa um status quo no qual quaisquer acordos alcançados são justos. É uma situação em que as partes estão representadas igualmente como pessoas morais e o resultado não é condicionado por contingências arbitrárias ou pelo equilíbrio relativo das forças sociais.”

E a imaginada posição serve para estabelecer a diferença entre 1. as doutrinas compreensivas de bem comum (que todas as pessoas reconhecem num determinado projeto de vida, na sua profissão ou religião por exemplo); e 2. a compreensão universal da ideia de justiça a promover pelas distintas instituições sociais. A favor da neutralidade de justificação do que é justo suspende-se a vida boa à maneira da êpoche husserliana. E assim perante esta suspensão e distinção, sobretudo contra elas, pergunto: Não será a justiça a virtude que melhor expressa a ligação entre a bondade e a inteligência? Não é ela o maior dos bens? Porquê submetê-la somente ao correto funcionamento das instituições sociais, transformando o direito na tarefa primordial da filosofia?
Antes das respostas, apresento os dois princípios da justiça de Rawls: 1. princípio de liberdades fundamentais para todos (equal liberty), e 2. princípio da igualdade de oportunidades o qual pressupõe o princípio da diferença (difference principle). Este segundo princípio expressa-se numa bipartição de objetivos: a) igualdade de acesso aos mesmas cargos e benefícios e b) igualdade distributiva dos bens económicos, mormente rendimentos e riquezas. Estes dois princípios da justiça surgem quando as partes da posição original se sujeitam e pactuam sob o “véu de ignorância”, ou seja, no desconhecimento em relação à sua vindoura posição social. 
Relembrando Max Weber, a ideia de justiça de Rawls responde ao apelo de uma ética da convicção, deontológica, desinteressada do contexto e da sua contaminação. Uma ética sem moral, diria Adela Cortina, distante da ética da responsabilidade, da ponderação entre os meios e os fins e das suas previsíveis consequências. Rawls pretende precisamente tornar a filosofia moral algo não-avesso à prática e à retórica políticas, tornando esta última mais intelectual e inteligente. Contudo, essa demanda acaba por colocar a ética contra a própria moral fechando-a numa reflexão transcendental das instituições radicalmente distante das nossas conceções morais, em última análise, de nós próprios. 
            Ficamos assim perante o dilema: “Rawls e para além de Rawls”. É este o título que Amartya Sen dá a um dos capítulos da obra A ideia de justiça que dedica a John Rawls. No entanto, a sua argumentação parte desde logo de um paradoxo, à partida, irreconciliável: o da relação entre a institucionalização transcendental da justiça e a sua realização comportamental. A pergunta à qual Sen diz ser imperativo responder não é a da condição de possibilidade a priori da justiça. É a da capacidade ou das capacidades que estão em jogo na redução do seu contrário: a injustiça. O juízo comparativo valerá então mais do que a posição original e a sua ficção. A circunstância que se pondera e critica valerá mais do que a teoria que se deseja. De facto, posso saber na ponta da língua o que é a posição original, a equidade, a liberdade, a igualdade, a justiça, mas sem realização crítica desse saber jamais conseguirei responder à pergunta fulcral de Sen: afinal, como podemos reduzir a injustiça?
A métrica da igualdade social, examina Sen em relação a Rawls, não pode centrar-se apenas na distribuição de rendimentos e riquezas. Como avalia João Cardoso Rosas sobre este tema: “o essencial não é a quantidade de dinheiro que se possui, mas o facto de isso proporcionar - ou não - o acesso ao que é essencial à vida humana num contexto específico e dependente de uma série de factores diferentes, como o ambiente natural, as tradições culturais e religiosas, etc.”
É preciso aproximar pelo exame e pela crítica, capacidades fundamentais, instituições e pessoas, inteligência e bondade, e não apenas ficcionar essa realização, pois tal como advoga Sen “perguntar como vão as coisas e indagar se poderiam ser melhoradas, [é] uma parte integrante da demanda da justiça a que não se poderá escapar e que, aliás, deverá ser constante.” Michael Sandel defende-o também: “a justiça não tem apenas que ver com a forma certa de distribuir coisas. Tem igualmente que ver com a forma certa de valorizar as coisas.”

Da justiça como autonomia
Em 2001 Adela Cortina publica a obra Alianza y contrato: política, ética y religión. Nela estabelece, com vigor filosófico, a relação entre uma ética de mínimos, portanto cívica, e uma ética de máximos, configuradora do bem comum.

“A ética cívica é o conjunto de valores e normas que partilham os membros de uma sociedade pluralista, sejam quais forem as suas concepções de vida boa, os seus projectos de vida feliz.”
“O cumprimento da ética cívica pode exigir-se moralmente à sociedade (…). As éticas de máximos não podem ser objecto de exigência numa sociedade, apenas de convite.”

Cortina assume uma posição de relação mútua e, por sua vez, de não absorção entre a ética de mínimos e a ética de máximos. Ou para dizê-lo com Jonh Rawls entre a ideia “universalizada” de justiça e as distintas doutrinas compreensivas do bem comum. Uma não pode jamais subsumir a outra a bem da vida democrática e da vida circunstanciada, ou para dizê-lo com Aristóteles, da vida feliz. Por um lado, “os mínimos alimentam-se dos máximos”, ou seja, já inserido numa determinada comunidade, o cidadão deve responder às exigências da justiça, saber que esta mais do que um princípio é um valor, um bem. Por outro lado, “os máximos têm de purificar-se a partir dos mínimos.” Pensemos no caso do fundamentalismo religioso que faz coartar, através da ação violenta, o princípio incondicionado da humanidade. Não se purifica neste último e, portanto, perpetua a intolerância e a violência. E Cortina é clara neste ponto: ética de minímos e ética de máximos não podem ser autosuficientes. Se o forem acabam por “engolir o homem” e consequentemente a humanidade. Volvidos seis anos após a publicação de Alianza y Contrato, Adela Cortina escreve Ética de la razón cordial e como veremos, pela epígrafe abaixo citada, a sua conceção de civilidade não se centrará apenas na diferenciação entre ética de mínimos e ética de máximos. Recentrar-se-á na configuração humana do humano, ou seja, na forja ou inauguração do caracter. E diz o seguinte:

“A ética cívica foi-se constituindo como o conjunto de valores e princípios éticos que uma sociedade moralmente pluralista partilha e que permite aos seus membros construir a vida juntos.
Era - e é - a ética das pessoas enquanto cidadãs, comprometidas na vida de uma comunidade política da qual devem ser protagonistas indiscutíveis. (…)
Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos, e nunca instrução em princípios políticos, por muito que pertençam a constituições democráticas e por muito que se explique a história através da qual se geraram tais constituições.”

Sublinho: “Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos”. O importante não é somente averiguar a justiça das ações levadas a cabo pelos seres humanos, é preciso saber ver se o sujeito que as protagoniza é um ser humano justo, com um caracter bem construído e, por sua vez, educado.  Voltamo-nos assim para questão do êthos como morada do ser, como toca diria Martin Heidegger, cuja “decoração” é inteiramente nossa e deverá ser integralmente autónoma.
E por esse motivo nomeio a justiça de autonomia.
Explico agora melhor essa nomeação. Em 1986, no prólogo dedicado à obra Ética mínima de Adela Cortina, José Luis Aranguren apontava às éticas procedimentais da justiça, de Kant a Habermas passando por John Rawls, a seguinte limitação: “À ética intersubjectiva, deve conjugar-se a ética intrasubjectiva, ou seja, o diálogo que cada um de nós somos.”
Se aprendemos com Aristóteles, e antes dele com o mestre Platão, a radicalidade do diálogo que devemos reavivar constantemente conosco próprios, ao jeito de exame diria antes Sócrates: “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”, a ética deve então ser prefácio da política e não o contrário. Em todo o caso, continuamos a insistir na inversão do percurso moral do ser humano ao mundo e valoramos apenas a ética como ética social dialógica. Colocamos a educação para a cidadania, por exemplo, antes da educação moral. E José Luis Aranguren tem razão, embora uma razão intempestiva: antes de o ser humano ser um diálogo inter, um diálogo com os outros, deve ser um diálogo intra, num pensar que examina o seu caracter e, por sua vez, o cria, inaugura e elenca aos mais próximos. Aranguren vê com acutilância o perigo de dissolução do fenómeno moral no direito e na política, reduzindo-se assim a ideia de valor aos princípios éticos e o papel inédito do sujeito em sociedade à responsabilidade das instituições.
Para concluir, refiro-me à definição de autonomia da vontade de Immanuel Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes:

“autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei. O princípio da autonomia é: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo como lei universal.”

A ética é primordialmente uma questão de atitudes. Kant tinha consciência desse factum da razão. O “querer mesmo”, a vontade, deve ajuizar e agir em sintonia com a “lei universal”. A autonomia pessoal deve ser capacidade autolegisladora de universalização. Deverá sê-lo. Sobretudo para aproximar cada vez mais autonomia e justiça, pessoa e humanidade. Realizar a lei moral dentro e fora de mim. No fundo, temos de viver sempre nas proximidades do seguinte dilema: “direito e política parecem bastar para regular as relações sociais, sem necessidade de perguntar à filosofia se são ou não humanas.” Este dilema é lançado por Adela Cortina em tom de suspeita, mas remete-nos também para a dimensão da esperança, da colheita. Indagar pela justiça é perguntar pela humanidade do humano, é perguntar por si próprio e pelo outro nas fronteiras que nos separam da desumanização. E mais do que perguntar, é fazer humanidade. Parafraseando Ortega y Gasset “o tigre não pode destigrar-se, mas o ser humano pode desumanizar-se” e para que tal não aconteça é preciso que Karl Jaspers tenha razão. E a tenha sempre. É preciso que a filosofia seja perigosa, que incomode… E que o seja munida do seu mais geminado conceito: o de crítica. Crítica constante em relação “[às] convenções, [ao] hábito de julgar que o bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, [à] vontade ilimitada do poder, [ao] fanatismo das ideologias, [ao] compadrio dos políticos.” É preciso indagar se as relações pessoais e sociais são ou não humanas, uma reflexão que é constante, disse-o mais acima Amartya Sen, e cuja constância é a bem da tensão entre liberdade e civilidade, autonomia e justiça.
  

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Heidegger e Atena. As fronteiras movediças do humano.

Atena, Museu da Acrópole em Atenas, século V a.C.


Esta reflexão é fruto do comentário à conferência proferida pela Professora Luísa Neto da Faculdade de Direito da Universidade do Porto intitulada A Bioética como novo Direito Natural? A convite do Grupo Filosofia e Espaço Público do Instituto de Filosofia da FLUP aquando do 2.º Ciclo de conferências Filosofia e condição tecnológica, a Professora suscita e discute acerca da bioética como novo direito natural e nesse horizonte colocou-nos a seguinte questão: “nem tudo o que não é punido é lícito, nem tudo o que não é proibido é lícito: devemos fazer algo apenas porque é possível?”
Esta afirmação/questão da Professora Luísa Neto sugere, a meu ver, uma imagem e um texto, ambos profundamente filosóficos. A imagem é a da deusa Atena no Museu da Acrópole de Atenas e o texto “A proveniência da arte e a determinação do pensar” (www.martin-heidegger.net) da autoria de Martin Heidegger. Trata-se de uma conferência proferida pelo filósofo em 1967 na Academia de Artes e Ciências de Atenas, uma reflexão sobre a deusa Atena, no seu papel de conselheira, iluminadora e guardiã da arte na Grécia antiga. Sabemos que Martin Heidegger foi um filósofo bastante dedicado à pergunta pela técnica e esta tem uma fulcralidade, diria ontológica, no seu pensar. Assim o reconhece na entrevista dada à revista Der Spiegel, “já só um deus nos pode ainda salvar” (www.martin-heidegger.net), publicada postumamente em 1976.  
A reflexão do filósofo sobre a técnica assegura pensá-la enquanto daimón do humano e avaliá-la como força violenta e subjugadora do seu “fazer” face à natureza. A techné grega é por si reconhecida como poder criador no sentido daquilo que impera no mundo como obra humana distinta do brotar da natureza - da phusis. Somente a técnica moderna, diz Heidegger, surge à filosofia como “dar que pensar”, pensar que não decorre do poder criador do humano enquanto tal, mas da sua incapacidade em pensar as suas fronteiras, os limites do poder criacional. O carácter inquietante do ser humano prende-se com a insondabilidade da sua ação no poder ou não poder saber aquilo que “faz” enquanto criação própria. O imperar do logos - palavra, cálculo, ordem - face à natureza, é o semblante moderno que pretende sondar toda a “brutalidade” da matéria viva e torná-la sua, conhecida, manipulável, comprovável.
Do mesmo modo que o filósofo pensa a técnica como aplicabilidade do método científico, e se demora nesse pensar, também nós hoje, um pouco distantes de Heidegger e ainda mais de Atena nos colocamos a pensar sobre as possibilidades e fronteiras do conhecer e, sobretudo, do agir humanos: “devemos fazer algo apenas porque é possível?” Não haverá um limite que se interponha entre a criação, ação humanas e a natureza, ou seja, entre aquilo que criamos e o que não precisa das mãos humanas para acontecer? Por último: estaremos nós conscientes desse limite, desse “marco-fronteira” entre a techné e a phusis?
Por esse motivo, escolhi Heidegger e a deusa Atena para poder pensar acerca do caracter inquietante - unheimlich - do ser humano e por este ser também, a meu ver, o dilema fulcral da bioética: conseguir estabelecer a fronteira entre o cuidado e a inquietude do ser, na autonomia que, por sua vez, e enquanto princípio primeiro da bioética, é humanitas do humano enquanto tal e terá de o ser. Sabemos que o impulso da criação científica e técnológica é sempre mais rápido, mais funcional do que o próprio pensar. Não guarda responsabilidade perante a fronteira que delimita o que é criado por nós e o que não precisa de nós para existir. Enquanto não formos capazes de meditar com cuidado sobre essa fronteira, através do pensar, a inquietude do ser tomará sempre conta de nós e a autonomia cederá. Se cede a autonomia, perde-se a humanitas do humano, a única capaz de conduzir o homem à verdadeira habitação do ser.
 Em 1947 Heidegger salienta na sua Carta sobre o humanismo o seguinte:

“O pensar trabalha na edificação da casa do ser; é como tal casa que a juntura do ser dispõe, sempre de acordo com o destino, a essência do homem para morar na verdade do ser. Este morar é a essência do “Ser-no-mundo”.
(…) Um dia seremos mais capazes de pensar o que é a “casa” e “habitar” a partir da essência do ser adequadamente pensada.”

            Destaco desta epígrafe três verbos cruciais na linguagem heideggeriana: pensar, habitar e ser e tento relacioná-los de um modo mais prosaico, vivencial, diria. O pensar é um meditar que nos permite habitar a casa do ser, mas não imediatamente nem totalmente… A meditação é um trabalho que leva tempo, toma o nosso tempo, e nem todos estamos dispostos a dá-lo ao ser que permite habitar o mundo e fazer dele a nossa casa. Volto então ao texto inicial “A proveniência da arte e a determinação do pensar”. E volto ao seu fim, não ao início que guardarei para mais tarde. A reflexão de Heidegger neste texto finda com um conceito bem conhecido do seu pensamento e de quem a ele se dedica: aletheia. A-letheia significa em grego o não-encoberto, ou seja, aquilo que se desvela, mas que sempre necessita do velamento e da obscuridade para existir, para surgir, para brotar. Heidegger associa à ideia grega de a-letheia a ideia de verdade: “todo o pôr-a-descoberto requer sempre o estar encoberto.” E associa também às suas palavras um dito de Heraclito: “àquilo que brota de si mesmo é-lhe próprio encobrir-se.”
Aqui se esconde o grande impensado da era moderna e do seu mundo como imagem. O que importa nos alvores da Modernidade, diz Heidegger, é desvelar tudo, desencobrir tudo, fazer do mundo uma ou várias imagens passíveis de cálculo e de codificação. Não há lugar para a a-letheia grega e muito menos para a voz conselheira dos deuses. Tudo é presentificado pelo sujeito do conhecimento e deve sê-lo. O mundo apresenta-se como adequação e não como revelação do ser ao homem. Este revelar, diriam os gregos, pressupõe um esconder. E, por conseguinte, volto à deusa Atena. Atena é para os gregos a deusa da sabedoria em três momentos chave. Num primeiro momento, Atena aconselha os homens nas suas mais diversas criações: da arte à política passando pela filosofia. A sua palavra conselheira prevê o caminho ainda não havido, alumia, clareia as veredas do ser na busca criacional. O seu olhar meditativo ilumina e dá ser ao que ainda não está criado, ao que somente pré-existe no homem. O seu olhar é o olhar da coruja que de noite ilumina, clareia o caminho dos homens, fá-los ver mais longe e ir além… Mas não muito além de si próprios, alerta Heidegger:

“o seu olhar meditativo não contempla apenas a figura invisível das possíveis obras humanas. O olhar de Atena descansa, sobretudo, no que permite a partir de si desdobrar-se nas coisas que não necessitam de ser produzidas pelo ser humano para se tornarem presentes.”

Se se atender bem à imagem da deusa Atena no museu da Acrópole olhamos a sua postura como a daquela que medita, que reflete perante a “pedra-marco”, a fronteira. Atena auxilia os homens nas suas façanhas e criações culturais, mas alerta-os também para o risco de se ultrapassarem, de pisarem a fronteira, o marco. O limite que estabelece a partir de si mesmo “o que não necessita de ser produzido pelo ser humano para se tornar presente”, para vir à luz. No mundo grego existe uma co-pertença entre techné e phusis, arte e natureza, aquilo que pode ser criado e o que é espontâneo, o dar-se. Ambas co-pertencem-se e assistem serenamente ao desvelamento do ser. Muitos poetas, entre os quais o poeta Ésquilo, sabem do poder alumiador e secreto de Atena. Ésquilo coloca as seguintes palavras na boca da deusa: “Só eu, entre os deuses, conheço a chave da casa em que, encerrado e selado, o raio repousa”. Como filha de Zeus, Atena sabe onde o pai guarda o raio, mas nunca fez uso dele. Sabe do limite que se impõe e conserva-o. Sabe que seria incapaz de o controlar, tal como Pandora não conseguiu controlar a saída dos males da caixa oferecida pelos deuses a Epimeteu.
            No entanto, como nos comportamos nós hoje no mundo dito científico? Guardamos a mesma sabedoria grega do limite ou ultrapassamo-la? Para responder a esta pergunta Heidegger recorre às palavras de Nietzsche: “O que caracteriza o nosso século XIX não é o triunfo da ciência, mas o triunfo do método científico sobre a ciência.” Heidegger explica: “o método é o projecto antecipativo do mundo, que fixa o rumo exclusivo da sua investigação possível. (…) O da total calculabilidade de tudo o que é acessível e comprovável mediante experimentação.” Este cálculo-ordem inclui não só o mundo, mas o próprio ser humano cuja custódia e configuração é “factor de perturbação” e de clausura, clausura de si em si mesmo. O pensar não toma parte nos caminhos do conhecer e do produzir. O ocaso do Ocidente enquanto progredir do método científico expressa-se no modo de antecipar e representar o curso do mundo e do homem.
A bioética é hoje um esforço do pensar em relação ao conhecer e ao produzir da ciência, as ações e consequências da sua investigação. Uma ponte meditativa entre “os conhecimentos biológicos e os valores humanos” (Van Rensselaer Potter). A bioética alerta, através de diversas áreas do saber tais como a filosofia ou o direito, para o progredir da ciência enquanto método instrumentalizado e provocador do ser, e para a sua prentensa neutralidade. Heidegger desvirtua, destrói o papel privilegiado do ser humano no universo e tenta colocá-lo em harmonia, em cuidado para com o ser. Sorge em alemão quer dizer, simultaneamente, cuidado e inquietude e, por vezes, o ser humano não quer apenas ser e estar-no-mundo enquanto guardião zeloso do “aparecer”, do “desocultar” do ser. Quer que ele apareça sempre, invoca ao ser para que este se produza interminavelmente e, por isso, provoca-o, ultrapassando os seus próprios limites, ou seja, as fronteiras humanas da ação e da invenção. Estará a bioética preparada para responder a esta provocação do ser? Para iluminar através do pensar a relação entre o cuidado e a inquietude? Para marcar a sua fronteira?
São mais as perguntas do que as respostas é um facto.
Termino com as palavras de Margaret Thatcher reavivadas há pouco tempo no filme The Iron Lady realizado por Phyllida Lloyd e protagonizado por Meryl Streep. Questionada pelo seu médico de família sobre o seu estado de saúde na universal pergunta: como é que se sente? Thatcher suspira e medita: “hoje em dia as pessoas apenas sentem, não pensam.” E continua: “o grande problema do nosso tempo é que somos governados por pessoas que apenas se preocupam com sentimentos e não por pessoas que acreditam em pensamentos e ideias.” O médico replica: “Nesse caso, Margaret, o que é que pensa?” Ela responde: 

“Cuidado com os pensamentos, eles transformam-se em palavras.
Cuidado com as palavras, elas transformam-se em ações.
Cuidado com as ações, elas tornam-se um hábito.
Cuidado com o hábito, ele forja o caracter.
Cuidado com o caracter, pois ele é o seu destino.
Somos o que pensamos.”  


 

domingo, 18 de dezembro de 2011

Da justiça e do amor: um filosofar sem filósofos

Ana Carina Vilares e Ruben Azevedo

     O julgamento de Salomão, Gaetano Gandolfi, 1775

Carina: Coloco-me na minha circunstância a pensar sobre a justiça - o conceito e as suas conceções - e coloco-me pois dentro da ligação possível entre a liberdade e a igualdade do ser humano e das suas relações interpessoais no mundo. Já compliquei, eu sei. Mas em boa verdade para responder com seriedade à questão o que é a justiça? e sendo ela uma dialética sempre tensional, desproporcional, entre ser livre para mim e ser igual para outrem, penso que a esta primeira pergunta deve associar-se uma outra, mais trabalhosa e esforçada, difícil. A questão é a seguinte: quando ajo justamente será que sei que sou livre e, por sua vez, igual a outrem? Sei, é certo. Contudo, nem sempre o quero ser.
Dois verbos surgem, portanto, em destaque na abordagem conceptual da justiça: o verbo saber e o verbo ser. Intensamente filosóficos, altamente perigosos. Na sua separação reside a diferença entre saber o que é a justiça e, por sua vez, ser-se justo. Na sua união o seu contrário. Ou seja, na sua união reside a tensão entre saber e ser justiça, na relação entre a lei justa e a prática social da justiça, enquanto reconhecimento do outro como meu semelhante, próximo, vizinho; num paradoxo, no outro igual. Curiosamente e hoje que escrevo sobre um dos temas mais filosóficos de sempre não posso chamar à colação discursiva filósofos. Somente poetas. E assim dou um ar de pitonisa e remeto a minha reflexão aos Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro, dos quais destaco uma passagem simples, incisiva e, a meu ver, bastante filosófica. O poeta diz:
“Haver injustiça é como haver morte.”
Aqui morte não é o contrário de vida. Não é. Há nas palavras de Caeiro outra mensagem escondida, mais profunda, oculta e desoculta também. Perante a injustiça ficamos parados, atónitos. Num primeiro momento, não pensamos, não adaptamos o nosso saber do que é a justiça ao ser justo, ou seja, a ideia à sua concretização. Para nós, a injustiça surge como algo de irreal, não-ser, não-nosso. É como se o corpo e o espírito fossem sem vida durante alguns momentos, um curto-circuito que se dá quando somos desleais, maus, vis, infiéis. Aquela ação parece não fazer parte de nós e sentimo-nos estranhos, a definhar, a deixar de ser. De facto a ideia filosófica - moral e política - de justiça que promete animar e anima a prática comum das instituições não chega, não preenche a vida humana de boas ações e de ações justas. É preciso mais do que saber, é preciso ser. Sabemo-lo desde… não vou dizer. Mas, para se ser justo, solidário, amigo, companheiro, e sê-lo a cada bater incessante do nosso coração é preciso ter um: um coração. Não um coração de pedra, mas de carne, de corpo, uma espécie de corda que incorpora e dinamiza o que as ideias não conseguem fazer sozinhas por muito racionais que possam parecer. Se à ideia de justiça unimos as palavras distribuição, equilíbrio, equidade, em última instância, igualdade, elas pronunciam-se de ânimo leve, mas não se concretizam por si. É preciso alguém. Uma pessoa de carne e osso, pessoas singulares. Alguém que lhes dê corpo, chama, carne, emoção… E tens alguma coisa a dizer sobre isto Ruben?

Ruben: Sim professora. Não há dúvida que a justiça por si mesma será apenas uma das faces de uma outra expressão, menos fria, menos letra de lei e mais espírito. Chamar-lhe-ia amor. E, por isso, dou espaço ao próprio amor para se manifestar.
Amor: Tenho muitos nomes, e um deles é Amor. Defino-me desde os tempos imemoriais segundo uma necessidade universal de Concórdia, Harmonia e Unidade. Antes de ser já o era, e cada átomo do Universo, cada partícula mais elementar dessa matéria que é também espírito, guarda em si mesmo a memória antiga, remota mas tão presente quando ausente, do Equilíbrio Primordial. A divisão e a desunião são apenas momentos, episódios de uma História ainda totalmente por escrever, pois tudo o que existe partilha de um antepassado comum, um tempo para lá de toda a bruma onde tudo estava ligado, em perfeito e são Equilíbrio. Um ainda nebuloso pecado original deitou tudo a perder, e o ponto de densidade infinita onde tudo o que existe e alguma vez existirá, onde todo o contraditório e todo o paradoxo encontravam a sua lógica oculta, explodiu e fragmentou-se em infinitas partes que, porém, guardam no mais profundo de si a memória do Todo. Eu, o Amor, nada mais sou do que a expressão desta vontade inerente a todo o ser de retornar à Totalidade, ao Uno original, ao Equilíbrio Primordial.
Eu, o Amor, insinuo-me nas almas de tudo o que é, vivo ou não vivo, animado ou inanimado, aproximando o diverso, unindo o disperso, para que num saudoso futuro os pequenos nadas retornem ao paraíso de onde nunca deviam ter saído; para que, religados, o Alfa e o Ómega sejam por fim, um só espírito. Existo em tudo o que existe. Sou eu que desperto no átomo essa vontade de união com outro átomo para que ambos, complementando-se, teçam a trama da matéria; sou eu que desperto no homem esse vazio essencial, esse espaço de solidão e incompletude que o move na direção do outro, igualmente só e incompleto, para que ambas as solidões se façam companheiras de viagem; porque eu insinuo-me nas essências, por isso aquele que diz amar o diverso de si apenas se reconhece a si nele. Eu sou o espelho das almas, e amar mais não é do que olhar-se ao espelho na alma do outro. Sou um criador de mundos, um demiurgo fundador de oásis de eternidade, de luz e esperança subtil na negritude do indeterminado. Sou um astro que verte a sua luz sobre as estradas dos que estão perdidos e desencontrados, para que se encontrem e descubram que afinal todas as distâncias podem ser superadas e todas as fronteiras ultrapassadas, desde que haja luz. Sou por natureza narcísico, porque o Amor só pode amar-se a si mesmo e não nenhuma coisa em particular. Não sou eu que amo os homens, mas os homens que se amam a si mesmos, e é por se amarem em reciprocidade que me amo a mim mesmo. Porém, é quando o homem deixa de amar o outro para se amar primeiro a si, é quando o Ego se insinua que eu me transfiguro como Janus, e então a minha face não é a do Amor, mas a do Ódio. Não venha o Ódio separar aquilo que o Amor uniu.
Está esclarecida professora Carina?
Carina: Sim, emotivamente, sim. Contudo e supondo a conclusão inconclusiva de que a justiça e o amor têm o mesmo solo filosófico, a saber, a união e a igualdade, porque razão andam tão distantes? Podes responder-me, Ruben?
Ruben: Gostaria, para começar, de responder a partir da história bíblica de Salomão, o rei da antiga Israel cuja sabedoria se tornou lendária e paradigmática. Não é por acaso que as estátuas que representam a Justiça nos tribunais atuais seguram uma espada, símbolo da espada de Salomão. Como sabe, a Salomão foi apresentado um caso de duas prostitutas que reclamavam a maternidade de uma criança viva. Salomão, depois de ouvir cada uma das pretendentes à maternidade da criança, tomou uma decisão que lhe pareceu, de acordo com os cânones da equidade e da repartição justa, a mais adequada. Com a sua espada, dividiria a criança a meio e daria a cada pretensa mãe uma metade, e desta forma o problema da repartição ficaria resolvido. Para que melhor se compreenda transcrevo aqui a passagem em questão:
Duas prostitutas foram ter com o rei [Salomão]... Uma das mulheres disse: «Meu Senhor, eu e esta mulher moramos na mesma casa. ... Quando acordei de manhã, para dar de mamar ao meu filho, vi que estava morto. Olhei bem e notei que não era o filho que eu tinha dado à luz.» A outra mulher disse: «É mentira! O teu filho é que está morto e o meu é que está vivo». E começaram a discutir diante do rei. Então o rei interveio. ... «Trazei-me uma espada.» E trouxeram ao rei uma espada. O rei disse: «Cortai o menino vivo em duas partes e dai metade a cada uma.» Então a mãe do menino vivo ... suplicou:  «Meu senhor, dá-lhe o menino vivo, não o mates.» A outra, porém, dizia: «Não será nem para mim, nem para ti. Dividam o menino ao meio.» Então o rei pronunciou a sentença: «Entregai o menino vivo à primeira mulher. Não o mateis, pois é ela a sua mãe.»
Ao que parece uma das prostitutas parecia renegar a criança morta que era sua filha, cobiçando a criança viva, filha da outra prostituta. A partir de uma visão estritamente equitativa, contabilística, baseada numa conceção de justiça como repartição igualitária, a decisão do rei de dividir a criança viva a meio parece ser a mais adequada e justa. A verdade é que ele, enquanto juiz imparcial, não tem meios para averiguar com absoluta certeza a quem pertence a criança. Na época de Salomão não existiam ainda os testes de ADN para servir de prova empírica capaz de sustentar uma decisão clara e inequívoca. A sua decisão, se se mantivesse neste registo meramente contabilístico, constituiria não propriamente um ato justo, mas uma espécie de ato de injustiça menor. Assim, restou-lhe uma boa dose de inteligência e compreensão no que toca à natureza humana, quando colocada perante determinadas circunstâncias limite. Uma decisão verdadeiramente justa teria de superar a mera repartição equitativa, a mera igualização. Desta forma, a decisão do rei serviu sobretudo para provocar uma reação fundada no amor, que neste caso concreto é sobretudo de amor maternal. Perante a morte eminente da criança, a verdadeira mãe só poderia reagir de modo a salvaguardar a vida da criança, ainda que para tal fosse obrigada a entregá-la à outra prostituta. Esta, movida sobretudo pela inveja e por um sentimento de vingança travestido de senso de justiça, estava disposta a ver a criança morrer para impedir que a verdadeira mãe tivesse a felicidade de recuperar a criança. Se não podia ficar com ela, então mais ninguém ficaria.
A sabedoria de Salomão está precisamente no modo como foi capaz de fazer justiça através da comoção, ou seja, despoletando no julgado um movimento complementar ao movimento do juiz, cujo ponto de convergência é o mais próximo possível de um tipo de justiça ideal. No caso da verdadeira mãe da criança, essa convergência de intencionalidades deu-se entre o amor maternal e a equidade distributiva. No caso da mãe falsa deu-se antes uma divergência de intencionalidades, desta feita entre o ódio e o desejo de vingança e a equidade distributiva. Se o rei tivesse optado por corresponder ao desejo da mãe falsa, estaríamos talvez perante uma decisão equitativa, mas injusta. Faltava-lhe, para ser verdadeiramente justa, o espírito do amor.

Carina: É verdade Ruben. Não tenho muito mais a acrescentar. De facto, a verdadeira glória do professor, neste caso da professora, é ser ultrapassado pelo seu discípulo.
Queria apenas fazer notar uma consideração. O amor vai mais longe do que a justiça, alcança o que a lei justa não promove por si, é verdade. Há a generosidade, a compaixão, a cordialidade, que conjugam toda uma série de emoções que ajudam a colmatar a frieza e a impessoalidade da justiça. O amor fala na primeira pessoa como tu bem referes e falas. Não há intermediários, nem mediações, há pessoas que tornam a sua experiência privada pública e sofrem na arena trágica. Por tragédia, falo mais uma vez em Antígona, paradigmática por excelência. Sófocles, o seu autor, faz significar pela ação da protagonista o amor, a compaixão, os quais forçam os limites da lei justa, obriga-os a “pensar mais”. Contudo, há sempre a necessidade de uma face impessoal da justiça que evite a tragédia, a lei que estabelece a fronteira entre o imediato e o inacessível. O ato de Antígona ao sepultar o seu irmão Polinices é contra a lei citadina de Creonte. Esse ato simboliza a violência da justiça divina no seu aparecer, uma lei ilegível, não social, mas que é acontecer trágico e que despoleta a cólera de Creonte. A generosidade, a compaixão, em última instância, o amor desocultam a catharsis simbólica da justiça, mas é preciso que ela também seja justiça e não só amor. Ou seja, medida, não só desmesura. Esta última pode despoletar tragédias pessoais e comuns se não formos capazes de sermos impessoais, de nos despirmos por vezes de nós, de sentirmos menos em prol dos outros. Não quero com isto dizer que a impessoalidade não seja, não radique na nossa individualidade. Radica sim e é aquilo que, por sua vez, permite ao ser humano ser verdadeiramente livre, autónomo, igual, personificar como diz Sophia de Mello Breyner, “a forma justa”, ao refrear alguns dos instintos humanos mais básicos. Um pouco como diz o rei Salomão em relação ao dom da palavra: “Quem refreia a boca guarda a sua vida. Mas quem solta os lábios arruína-se.” (Provérbios 13:3)
E termino com o poetar de Sophia:  

“Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.”

Ruben: Não há dúvida que tem razão, professora. Curioso que a sua reflexão caminha num determinado sentido, para o qual o poema de Sophia é sem dúvida o corolário adequado. Porquê? O caso de Antígona é o exemplo paradigmático do conflito entre a lei dos homens – demasiado humana no sentido de vil, radicada na vontade de poder, nos vícios da ganância e da dominação do homem pelo homem - e a lei dos deuses - eterna, universal, radicada nas virtudes da divindade, longe da vileza do terreno. Não, atenção, que os deuses gregos fossem propriamente um exemplo de virtude, mas é notória esta necessidade de encontrar um chão sólido para a moralidade no autor desta famosa tragédia. A verdade é que a história - a nossa história enquanto civilização - tem tentado diminuir este fosso entre a “lei divina” e a “lei dos homens”. O substrato universalista dos Direitos do Homem, radicado na noção de direito natural, bem como a “autonomia legisladora da razão” foram tentativas de fundar uma legalidade verdadeiramente humana, fundada numa espécie de convergência “pineal” entre a razão do homem e a razão divina. Neste contexto, surge o Amor como força vivificante da lei, este Amor pelo qual revoluções se fizeram, valores novos se afirmaram, sempre com vista à construção de uma cidade que a todos acolhesse enquanto seres de dignidade, iguais e fraternais. O problema está, de facto, na aplicação da lei. Não é que a lei seja má, mas quem a aplica, quem tem o dever de a interpretar e de a aplicar aos casos concretos, pode muito facilmente cair no perigoso vício da indolência administrativa. Perde-se o rosto humano, e com ele perde-se a Justiça. Mas também o Amor está em perigo, sobretudo quando se pretende inventar uma espécie de “Amor de Estado”, ao invés de um amor individual, experiencial, humano. O Amor de Estado, assim como a Justiça de Estado são extremamente perigosos e totalitários. Prefiro antes um Amor de homem para homem, bem como uma Justiça de homem para homem. Deixo, para terminar, um cântico escrito por São Paulo:

"Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e dos anjos,
se não tivesse amor,
seria como sino ruidoso
ou como címbalo estridente.

Ainda que tivesse o dom
da profecia,
o conhecimento de todos
os mistérios e de toda a ciência;
ainda que tivesse toda a fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tivesse amor, nada seria.

Ainda que eu distribuísse
todos os meus bens aos famintos,
ainda que entregasse
o meu corpo às chamas,
se não tivesse amor,
nada disso me adiantaria.

O amor é paciente,
o amor é prestativo;
não é invejoso, não se ostenta,
não se incha de orgulho.

Nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse, não se
irrita, não guarda rancor.

Não se alegra com a injustiça,
mas regozija-se com a verdade.

Tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta."
Muito obrigado por esta partilha magnífica, pela honra de poder partilhar consigo o ouro deste pensar a dois.

Carina: De nada, Ruben. Foi um prazer filosófico e poético, obrigada.