segunda-feira, 26 de maio de 2014

As brechas do político: de Le Pen a Francisco







Os resultados das eleições europeias são preocupantes, quase todos nós já percebemos isso, pelo menos aqueles que ainda têm o bom senso de se preocuparem com o mundo que os rodeia. São alarmantes, pelo menos parece-me, a dois níveis: no primeiro, pela evidência do descrédito dos eleitores (na maioria dos países europeus) em relação à classe política, simplesmente, calando a sua voz. Quando o que está apenas em jogo na política, para a maioria das pessoas, é a vida e não o mundo, invertendo a máxima arendtiana, de pouco nos vale, pensamos, participar politicamente. Guardemos ainda (isto dito em tom de ironia) o que podemos salvaguardar para nós próprios, pelo menos o nível da sobrevivência. «Queremos as nossas vidas» dizia o lema contra a Troika que circulou em Portugal durante vários meses. E é precisamente este nível de sustentabilidade económica e do medo que temos que os outros roubem aquilo que é nosso, que conduz ao segundo nível que nomeei também ele de alarmante: o do crescente pensamento «cerquista» de guardar as nossas casas, as nossas nações, os nossos iguais (os nossos) e com essa similitude assistir passivamente à ascensão da extrema-direita em países-chave da União como a França e a Alemanha. «É preciso que a França vá ao encontro daqueles que sofrem» dizia Marine Le Pen nas anteriores eleições presidenciais francesas em 2012, as quais perdeu a desfavor de Hollande, ficando ainda atrás de Sarkozy. Mas Le Pen sabe-o bem, e todos percebemos, é preciso que «aqueles que sofrem» sejam franceses e não de uma outra qualquer nacionalidade. A senhora sempre frisou isso muito bem: a França é para os franceses que sofrem, não para um qualquer ser humano que sofra. Mensagem recebida!


Logo ao início deste texto, partilhei convosco duas imagens que me fizeram refletir muito durante todo este dia. A foto da gargalhada desabrida de Marine Le Pen após a vitória do seu partido nas eleições de ontem e a lição do Papa Francisco encostado ao muro da Cisjordânia hoje em Israel. Não percebi bem se estava do lado de Israel ou do lado (do designado Estado-não membro pela ONU) da Palestina. Pois é, saberemos nós de que lado estamos quando estamos diante de um muro? De quanto mais tempo vamos precisar para perceber que o universal, como dizia o nosso grande poeta Miguel Torga, é o local sem os muros? Sem as fronteiras, sem as barreiras? A memória curta, a falta de consciência histórica que hoje tantos criticaram, de que não nos lembramos da nossa própria história, de que isto vai pelo mau caminho, está ali bem cimentada naquele muro da Cisjordânia, que não deveria sequer existir. Tenhamos esperança de que daqui a alguns anos esteja um pedaço dele ao lado do pedaço do muro de Berlim que está em Portugal, precisamente no Santuário de Fátima. Francisco deu-nos a lição que todos nós, os europeus, precisávamos, uns perceberam a mensagem, outros não. Mensagem recebida!    


Há bem pouco tempo vi o filme dedicado à vida de Ghandi, no qual, no final, ele diz muito simplesmente que a verdade acaba sempre por se revelar historicamente. Vem ao de cima! Por muito sangrenta que seja a guerra, por muito doloroso que seja o mal, o bem acaba sempre por manifestar-se, na sua pequena clareira, ou melhor diria, na sua brecha. É preciso admitir essas brechas no discurso político, é preciso que elas nele irrompam e que o desconstruam se tal for necessário. Até John Rawls, um dos mais incontornáveis filósofos políticos do século XX, o admitia. É preciso que onde a razão pública falha, isto é, onde ela não chega ou alcança, outros discursos como o religioso, o poético ou o artístico, tenham ainda uma última palavra a dizer. Por isso, relembrava Rawls, Lincoln lançava quase sempre mão de textos das Escrituras para se posicionar francamente contra a escravatura que dizia ser desumana. Ninguém deveria viver simplesmente para sobreviver. Ninguém deveria fazê-lo. Mas alguns fazem-no e até voluntariamente. Assim e enquanto não percebermos que na política o que está em jogo é o mundo e não a vida, agora sim com Hannah Arendt, o preço que pagamos por essa dedicação única à sobrevivência será certamente alto. Será certamente o preço da própria vida, que não têm preço, mas sim dignidade. Mensagem recebida?