domingo, 18 de dezembro de 2011

Da justiça e do amor: um filosofar sem filósofos

Ana Carina Vilares e Ruben Azevedo

     O julgamento de Salomão, Gaetano Gandolfi, 1775

Carina: Coloco-me na minha circunstância a pensar sobre a justiça - o conceito e as suas conceções - e coloco-me pois dentro da ligação possível entre a liberdade e a igualdade do ser humano e das suas relações interpessoais no mundo. Já compliquei, eu sei. Mas em boa verdade para responder com seriedade à questão o que é a justiça? e sendo ela uma dialética sempre tensional, desproporcional, entre ser livre para mim e ser igual para outrem, penso que a esta primeira pergunta deve associar-se uma outra, mais trabalhosa e esforçada, difícil. A questão é a seguinte: quando ajo justamente será que sei que sou livre e, por sua vez, igual a outrem? Sei, é certo. Contudo, nem sempre o quero ser.
Dois verbos surgem, portanto, em destaque na abordagem conceptual da justiça: o verbo saber e o verbo ser. Intensamente filosóficos, altamente perigosos. Na sua separação reside a diferença entre saber o que é a justiça e, por sua vez, ser-se justo. Na sua união o seu contrário. Ou seja, na sua união reside a tensão entre saber e ser justiça, na relação entre a lei justa e a prática social da justiça, enquanto reconhecimento do outro como meu semelhante, próximo, vizinho; num paradoxo, no outro igual. Curiosamente e hoje que escrevo sobre um dos temas mais filosóficos de sempre não posso chamar à colação discursiva filósofos. Somente poetas. E assim dou um ar de pitonisa e remeto a minha reflexão aos Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro, dos quais destaco uma passagem simples, incisiva e, a meu ver, bastante filosófica. O poeta diz:
“Haver injustiça é como haver morte.”
Aqui morte não é o contrário de vida. Não é. Há nas palavras de Caeiro outra mensagem escondida, mais profunda, oculta e desoculta também. Perante a injustiça ficamos parados, atónitos. Num primeiro momento, não pensamos, não adaptamos o nosso saber do que é a justiça ao ser justo, ou seja, a ideia à sua concretização. Para nós, a injustiça surge como algo de irreal, não-ser, não-nosso. É como se o corpo e o espírito fossem sem vida durante alguns momentos, um curto-circuito que se dá quando somos desleais, maus, vis, infiéis. Aquela ação parece não fazer parte de nós e sentimo-nos estranhos, a definhar, a deixar de ser. De facto a ideia filosófica - moral e política - de justiça que promete animar e anima a prática comum das instituições não chega, não preenche a vida humana de boas ações e de ações justas. É preciso mais do que saber, é preciso ser. Sabemo-lo desde… não vou dizer. Mas, para se ser justo, solidário, amigo, companheiro, e sê-lo a cada bater incessante do nosso coração é preciso ter um: um coração. Não um coração de pedra, mas de carne, de corpo, uma espécie de corda que incorpora e dinamiza o que as ideias não conseguem fazer sozinhas por muito racionais que possam parecer. Se à ideia de justiça unimos as palavras distribuição, equilíbrio, equidade, em última instância, igualdade, elas pronunciam-se de ânimo leve, mas não se concretizam por si. É preciso alguém. Uma pessoa de carne e osso, pessoas singulares. Alguém que lhes dê corpo, chama, carne, emoção… E tens alguma coisa a dizer sobre isto Ruben?

Ruben: Sim professora. Não há dúvida que a justiça por si mesma será apenas uma das faces de uma outra expressão, menos fria, menos letra de lei e mais espírito. Chamar-lhe-ia amor. E, por isso, dou espaço ao próprio amor para se manifestar.
Amor: Tenho muitos nomes, e um deles é Amor. Defino-me desde os tempos imemoriais segundo uma necessidade universal de Concórdia, Harmonia e Unidade. Antes de ser já o era, e cada átomo do Universo, cada partícula mais elementar dessa matéria que é também espírito, guarda em si mesmo a memória antiga, remota mas tão presente quando ausente, do Equilíbrio Primordial. A divisão e a desunião são apenas momentos, episódios de uma História ainda totalmente por escrever, pois tudo o que existe partilha de um antepassado comum, um tempo para lá de toda a bruma onde tudo estava ligado, em perfeito e são Equilíbrio. Um ainda nebuloso pecado original deitou tudo a perder, e o ponto de densidade infinita onde tudo o que existe e alguma vez existirá, onde todo o contraditório e todo o paradoxo encontravam a sua lógica oculta, explodiu e fragmentou-se em infinitas partes que, porém, guardam no mais profundo de si a memória do Todo. Eu, o Amor, nada mais sou do que a expressão desta vontade inerente a todo o ser de retornar à Totalidade, ao Uno original, ao Equilíbrio Primordial.
Eu, o Amor, insinuo-me nas almas de tudo o que é, vivo ou não vivo, animado ou inanimado, aproximando o diverso, unindo o disperso, para que num saudoso futuro os pequenos nadas retornem ao paraíso de onde nunca deviam ter saído; para que, religados, o Alfa e o Ómega sejam por fim, um só espírito. Existo em tudo o que existe. Sou eu que desperto no átomo essa vontade de união com outro átomo para que ambos, complementando-se, teçam a trama da matéria; sou eu que desperto no homem esse vazio essencial, esse espaço de solidão e incompletude que o move na direção do outro, igualmente só e incompleto, para que ambas as solidões se façam companheiras de viagem; porque eu insinuo-me nas essências, por isso aquele que diz amar o diverso de si apenas se reconhece a si nele. Eu sou o espelho das almas, e amar mais não é do que olhar-se ao espelho na alma do outro. Sou um criador de mundos, um demiurgo fundador de oásis de eternidade, de luz e esperança subtil na negritude do indeterminado. Sou um astro que verte a sua luz sobre as estradas dos que estão perdidos e desencontrados, para que se encontrem e descubram que afinal todas as distâncias podem ser superadas e todas as fronteiras ultrapassadas, desde que haja luz. Sou por natureza narcísico, porque o Amor só pode amar-se a si mesmo e não nenhuma coisa em particular. Não sou eu que amo os homens, mas os homens que se amam a si mesmos, e é por se amarem em reciprocidade que me amo a mim mesmo. Porém, é quando o homem deixa de amar o outro para se amar primeiro a si, é quando o Ego se insinua que eu me transfiguro como Janus, e então a minha face não é a do Amor, mas a do Ódio. Não venha o Ódio separar aquilo que o Amor uniu.
Está esclarecida professora Carina?
Carina: Sim, emotivamente, sim. Contudo e supondo a conclusão inconclusiva de que a justiça e o amor têm o mesmo solo filosófico, a saber, a união e a igualdade, porque razão andam tão distantes? Podes responder-me, Ruben?
Ruben: Gostaria, para começar, de responder a partir da história bíblica de Salomão, o rei da antiga Israel cuja sabedoria se tornou lendária e paradigmática. Não é por acaso que as estátuas que representam a Justiça nos tribunais atuais seguram uma espada, símbolo da espada de Salomão. Como sabe, a Salomão foi apresentado um caso de duas prostitutas que reclamavam a maternidade de uma criança viva. Salomão, depois de ouvir cada uma das pretendentes à maternidade da criança, tomou uma decisão que lhe pareceu, de acordo com os cânones da equidade e da repartição justa, a mais adequada. Com a sua espada, dividiria a criança a meio e daria a cada pretensa mãe uma metade, e desta forma o problema da repartição ficaria resolvido. Para que melhor se compreenda transcrevo aqui a passagem em questão:
Duas prostitutas foram ter com o rei [Salomão]... Uma das mulheres disse: «Meu Senhor, eu e esta mulher moramos na mesma casa. ... Quando acordei de manhã, para dar de mamar ao meu filho, vi que estava morto. Olhei bem e notei que não era o filho que eu tinha dado à luz.» A outra mulher disse: «É mentira! O teu filho é que está morto e o meu é que está vivo». E começaram a discutir diante do rei. Então o rei interveio. ... «Trazei-me uma espada.» E trouxeram ao rei uma espada. O rei disse: «Cortai o menino vivo em duas partes e dai metade a cada uma.» Então a mãe do menino vivo ... suplicou:  «Meu senhor, dá-lhe o menino vivo, não o mates.» A outra, porém, dizia: «Não será nem para mim, nem para ti. Dividam o menino ao meio.» Então o rei pronunciou a sentença: «Entregai o menino vivo à primeira mulher. Não o mateis, pois é ela a sua mãe.»
Ao que parece uma das prostitutas parecia renegar a criança morta que era sua filha, cobiçando a criança viva, filha da outra prostituta. A partir de uma visão estritamente equitativa, contabilística, baseada numa conceção de justiça como repartição igualitária, a decisão do rei de dividir a criança viva a meio parece ser a mais adequada e justa. A verdade é que ele, enquanto juiz imparcial, não tem meios para averiguar com absoluta certeza a quem pertence a criança. Na época de Salomão não existiam ainda os testes de ADN para servir de prova empírica capaz de sustentar uma decisão clara e inequívoca. A sua decisão, se se mantivesse neste registo meramente contabilístico, constituiria não propriamente um ato justo, mas uma espécie de ato de injustiça menor. Assim, restou-lhe uma boa dose de inteligência e compreensão no que toca à natureza humana, quando colocada perante determinadas circunstâncias limite. Uma decisão verdadeiramente justa teria de superar a mera repartição equitativa, a mera igualização. Desta forma, a decisão do rei serviu sobretudo para provocar uma reação fundada no amor, que neste caso concreto é sobretudo de amor maternal. Perante a morte eminente da criança, a verdadeira mãe só poderia reagir de modo a salvaguardar a vida da criança, ainda que para tal fosse obrigada a entregá-la à outra prostituta. Esta, movida sobretudo pela inveja e por um sentimento de vingança travestido de senso de justiça, estava disposta a ver a criança morrer para impedir que a verdadeira mãe tivesse a felicidade de recuperar a criança. Se não podia ficar com ela, então mais ninguém ficaria.
A sabedoria de Salomão está precisamente no modo como foi capaz de fazer justiça através da comoção, ou seja, despoletando no julgado um movimento complementar ao movimento do juiz, cujo ponto de convergência é o mais próximo possível de um tipo de justiça ideal. No caso da verdadeira mãe da criança, essa convergência de intencionalidades deu-se entre o amor maternal e a equidade distributiva. No caso da mãe falsa deu-se antes uma divergência de intencionalidades, desta feita entre o ódio e o desejo de vingança e a equidade distributiva. Se o rei tivesse optado por corresponder ao desejo da mãe falsa, estaríamos talvez perante uma decisão equitativa, mas injusta. Faltava-lhe, para ser verdadeiramente justa, o espírito do amor.

Carina: É verdade Ruben. Não tenho muito mais a acrescentar. De facto, a verdadeira glória do professor, neste caso da professora, é ser ultrapassado pelo seu discípulo.
Queria apenas fazer notar uma consideração. O amor vai mais longe do que a justiça, alcança o que a lei justa não promove por si, é verdade. Há a generosidade, a compaixão, a cordialidade, que conjugam toda uma série de emoções que ajudam a colmatar a frieza e a impessoalidade da justiça. O amor fala na primeira pessoa como tu bem referes e falas. Não há intermediários, nem mediações, há pessoas que tornam a sua experiência privada pública e sofrem na arena trágica. Por tragédia, falo mais uma vez em Antígona, paradigmática por excelência. Sófocles, o seu autor, faz significar pela ação da protagonista o amor, a compaixão, os quais forçam os limites da lei justa, obriga-os a “pensar mais”. Contudo, há sempre a necessidade de uma face impessoal da justiça que evite a tragédia, a lei que estabelece a fronteira entre o imediato e o inacessível. O ato de Antígona ao sepultar o seu irmão Polinices é contra a lei citadina de Creonte. Esse ato simboliza a violência da justiça divina no seu aparecer, uma lei ilegível, não social, mas que é acontecer trágico e que despoleta a cólera de Creonte. A generosidade, a compaixão, em última instância, o amor desocultam a catharsis simbólica da justiça, mas é preciso que ela também seja justiça e não só amor. Ou seja, medida, não só desmesura. Esta última pode despoletar tragédias pessoais e comuns se não formos capazes de sermos impessoais, de nos despirmos por vezes de nós, de sentirmos menos em prol dos outros. Não quero com isto dizer que a impessoalidade não seja, não radique na nossa individualidade. Radica sim e é aquilo que, por sua vez, permite ao ser humano ser verdadeiramente livre, autónomo, igual, personificar como diz Sophia de Mello Breyner, “a forma justa”, ao refrear alguns dos instintos humanos mais básicos. Um pouco como diz o rei Salomão em relação ao dom da palavra: “Quem refreia a boca guarda a sua vida. Mas quem solta os lábios arruína-se.” (Provérbios 13:3)
E termino com o poetar de Sophia:  

“Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.”

Ruben: Não há dúvida que tem razão, professora. Curioso que a sua reflexão caminha num determinado sentido, para o qual o poema de Sophia é sem dúvida o corolário adequado. Porquê? O caso de Antígona é o exemplo paradigmático do conflito entre a lei dos homens – demasiado humana no sentido de vil, radicada na vontade de poder, nos vícios da ganância e da dominação do homem pelo homem - e a lei dos deuses - eterna, universal, radicada nas virtudes da divindade, longe da vileza do terreno. Não, atenção, que os deuses gregos fossem propriamente um exemplo de virtude, mas é notória esta necessidade de encontrar um chão sólido para a moralidade no autor desta famosa tragédia. A verdade é que a história - a nossa história enquanto civilização - tem tentado diminuir este fosso entre a “lei divina” e a “lei dos homens”. O substrato universalista dos Direitos do Homem, radicado na noção de direito natural, bem como a “autonomia legisladora da razão” foram tentativas de fundar uma legalidade verdadeiramente humana, fundada numa espécie de convergência “pineal” entre a razão do homem e a razão divina. Neste contexto, surge o Amor como força vivificante da lei, este Amor pelo qual revoluções se fizeram, valores novos se afirmaram, sempre com vista à construção de uma cidade que a todos acolhesse enquanto seres de dignidade, iguais e fraternais. O problema está, de facto, na aplicação da lei. Não é que a lei seja má, mas quem a aplica, quem tem o dever de a interpretar e de a aplicar aos casos concretos, pode muito facilmente cair no perigoso vício da indolência administrativa. Perde-se o rosto humano, e com ele perde-se a Justiça. Mas também o Amor está em perigo, sobretudo quando se pretende inventar uma espécie de “Amor de Estado”, ao invés de um amor individual, experiencial, humano. O Amor de Estado, assim como a Justiça de Estado são extremamente perigosos e totalitários. Prefiro antes um Amor de homem para homem, bem como uma Justiça de homem para homem. Deixo, para terminar, um cântico escrito por São Paulo:

"Ainda que eu falasse línguas,
as dos homens e dos anjos,
se não tivesse amor,
seria como sino ruidoso
ou como címbalo estridente.

Ainda que tivesse o dom
da profecia,
o conhecimento de todos
os mistérios e de toda a ciência;
ainda que tivesse toda a fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tivesse amor, nada seria.

Ainda que eu distribuísse
todos os meus bens aos famintos,
ainda que entregasse
o meu corpo às chamas,
se não tivesse amor,
nada disso me adiantaria.

O amor é paciente,
o amor é prestativo;
não é invejoso, não se ostenta,
não se incha de orgulho.

Nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse, não se
irrita, não guarda rancor.

Não se alegra com a injustiça,
mas regozija-se com a verdade.

Tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta."
Muito obrigado por esta partilha magnífica, pela honra de poder partilhar consigo o ouro deste pensar a dois.

Carina: De nada, Ruben. Foi um prazer filosófico e poético, obrigada.



 




sábado, 26 de novembro de 2011

Tecnologia e afetos. Uma conversa com Antígona, Heidegger e... Freud.

Ontem, dia 25 de Novembro, realizou-se na FLUP a conferência inaugural dedicada ao tema Filosofia e condição tecnológica. No papel de primeiro convidado e contributo o Dr. Pedro Granja do INEB apresentou uma comunicação clara e distinta sobre A Medicina Regenerativa e o Homem do Futuro. Primou pela simplicidade, pela cordialidade, por um importante “chegar às pessoas” numa área tão difícil como a medicina e tendo em conta também um público de leigos nessa matéria. Durante toda a conferência tirei notas, pensei nas implicações e consequências morais da medicina regenerativa, mas fi-lo em silêncio. Hoje, com mais distanciamento sobre o assunto, nunca com distância, posso afirmar que todas as palavras do Professor Granja e da minha colega Sílvia Ferreira, que comentou as suas palavras do ponto de vista da reflexão filosófica, fizeram-me lembrar simplesmente… um poema. Um dos mais belos do coro d’Antígona de Sófocles que passo a partilhar:   

“Muitos prodígios há; porém nenhum
maior do que o homem.
Esse, co’o sopro invernoso do Noto,
passando entre vagas
fundas como abismos,
o cinzento mar ultrapassou. E a terra
imortal, dos deuses a mais sublime,
trabalha-a sem fim,
volvendo o arado, ano após ano,
com a raça dos cavalos laborando.

E das aves as tribos descuidadas,
a raça das feras,
em côncavas redes
a fauna marinha, apanha-as e leva-as
o engenho do homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
de longas crinas, o jugo lhe põe,
vence o touro indomável das alturas.

A fala e o alado pensamento,
as normas que regulam as cidades
sozinho aprendeu;
da geada do céu, da chuva inclemente
e sem refúgio, os dardos evita,
de tudo capaz.
Na vida não avança sem recursos.
Ao Hades somente
não pode fugir.
De doenças invencíveis os meios
de escapar já com outros meditou.

Da sua arte o engenho subtil
p’ra além do que se espera, ora o leva
ao bem, ora ao mal;
se da terra preza as leis e dos deuses
na justiça faz fé, grande é a cidade;
mas logo a perde
quem por audácia incorre no erro.
Longe do meu lar
o que assim for!
E longe dos meus pensamentos
o homem que tal crime perpetrar!”

O coro d’Antígona pronuncia-se após a sua protagonista ter realizado o rito fúnebre sobre o corpo do seu irmão, uma ação levada a cabo contra a ordem de Creonte, símbolo das normas justas da cidade que lidera. Antígona desafia a ordem pública e à sua imagem e semelhança Sófocles faz representar não a moderação e a calma humanas, mas sim a verdadeira violência aquando do esquecimento dos devidos limites. O coro chora o homem como “a mais demoníaca de todas as criaturas” nas palavras de Slavoj Žižek. E pelo poetar, refere Martin Heidegger, Sófocles desvela a verdadeira ontologia do humano: o seu caracter terrivelmente inquietante (unheimlich).
A reflexão do filósofo alemão sobre a técnica assegura pensá-la enquanto daimón do humano e avaliá-la como força violenta e subjugadora do seu “fazer” face à natureza, cuja techné grega é por si reconhecida como “poder criador” no sentido daquilo que impera no mundo como obra “humana” distinta do brotar da natureza (phusis). Somente a técnica moderna, diz Heidegger, surge à filosofia como “dar que pensar”, pensar que não decorre do poder criador do humano enquanto tal, mas da sua incapacidade em pensar as suas fronteiras, o limite do seu poder criacional. O carácter inquietante do ser humano prende-se com a insondabilidade da sua ação no poder ou não poder saber aquilo que “faz” enquanto inauguração sua, própria. O imperar do logos face à natureza - palavra, cálculo, ordem - é o semblante moderno que pretende sondar toda a “brutalidade” da matéria viva e torná-la sua, conhecida e manipulável.
Heidegger pensa precisamente a fronteira entre o poder e o criar humanos pela figura da deusa Atena e as palavras do filósofo bem o revelam nessa metáfora que é a do olhar: “o seu olhar meditativo não contempla apenas a figura invisível das possíveis obras humanas. O olhar de Atena descansa, sobretudo, no que permite a partir de si desdobrar-se nas coisas que não necessitam de ser produzidas pelo ser humano para se tornarem presentes.” Existe algo de subterrâneo, nas proximidades de Freud, que faz com que o ser humano esqueça os seus limites e se ultrapasse…
O que pode o humano criar e o que não deve criar? Esta dupla pergunta está singularmente sujeita ao plano da afetividade, das afeções ou, mais precisamente, daquilo a que Freud chama o princípio de prazer. O controlar da natureza é do domínio do dominar. O “brotar” humano que toma o lugar da natureza é do domínio do ultrapassar, do domínio de um querer sempre mais do que aquilo que nos é permitido fazer. Surge então o velho dilema entre a necessidade e o supérfluo. Entre a compulsão e a repetição. Dilema, diz Freud, entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, este último entendido como a verdadeira via crucis da Psicanálise na resposta à pergunta como “educar” uma pulsão sexual? Explica-o da seguinte forma:

“Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho mental mas que, do ponto de vista da autoconservação do organismo perante as dificuldades do mundo externo é, desde o começo, ineficaz e altamente perigoso. Sob a influência das pulsões de autoconservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. Este princípio não abandona a intenção de, no final, obter prazer, mas, no entanto, exige e leva a efeito o adiamento da satisfação, o abandono de um certo número de possibilidades de obter satisfação e a tolerância temporária do desprazer, como passos no caminho longo e indirecto que conduz ao prazer. No entanto, o princípio de prazer persiste longamente como método de trabalho empregue pelas pulsões sexuais, que são difíceis de “educar” e, partindo dessas pulsões, ou do próprio ego, muitas vezes consegue dominar o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo.”

“Além do princípio do prazer” é um texto que Freud escreve em 1920 e cuja epígrafe que cito não é de todo uma citação ingénua. Falou-se do princípio de prazer de Freud no debate que se seguiu à conferência do Professor Granja e ao comentário da Sílvia. Falou-se do princípio de prazer, não no princípio de realidade. E a última palavra que destaco nessa epígrafe é o verbo “educar”. E não é também de todo um destacar ingénuo. Vou primeiro aos afetos…
Um dos avanços tecnológicos mais noticiados da medicina regenerativa, entre outros, é termos a possibilidade de escolher a cor dos olhos dos nossos filhos, a cor do seu cabelo e quem sabe um dia a sua capacidade “alargada” de inteligência. Surge-me de rompante a imagem de um mundo de Einsteins todos de língua para fora, a desdenhar da nossa pacata ignorância: olha o menino tão inteligente que é! Cá está: o primeiro tlim tlim da afetividade. Agora outro exemplo, o mais grave: o da imortalidade do ser humano. Se em 2045 tal como revela a Revista Time, o homem torna-se-á imortal, imaginem o que não faremos para cá ficarmos, no mundo, nós e os nossos familiares? Seremos até capazes de matar… A que custo seremos então imortais? Segundo tlim tlim da afetividade… Por ambos os motivos, digo mais com Freud do que com Heidegger, a região subterrânea da tecnologia, a sua razão de ser, é a afetividade humana enquanto impulso, inclinação para satisfazer um prazer em detrimento do desprazer. Não coloco, neste ponto, a questão da necessidade, como por exemplo querermos salvar um familiar nosso de uma doença crónica, mas sim a questão do supérfluo, a da ação da compulsão à repetição, à mesmidade, ao ter invejável de coisas, instrumentos e equipamentos que as imagens incitadoras do consumismo mostram e (re)mostram… Não há neutralidade na tecnologia. Não há. Toda ela é tecida de afetos, “feita” para os afetos, inicitadora e capaz de nos afetar…
Agora, em uníssono, Freud e Heidegger chamam a atenção para o educar e para o pensar como tarefa, ou diria-o num sentido mais ético, como exigência pedida ao ser humano em tempos tão movediços. Ambos ensaiam uma resposta capaz de nos conduzir do prazer à realidade, do criar humano à fronteira do seu fazer, sem subsumir jamais um no outro. “Cair na real” como diz, e sabiamente, o povo brasileiro. A nossa vida é feita de pulsões, de afetos, de impulsos, mas também há que saber educá-los, de pensar sobre eles e julgar se efetivamente são ou não “camaradas” para a nossa ação. Do escolher a cor dos olhos dos nossos filhos à imortalidade vai um passo muito largo e é nessa largura que se obnubila o que jamais suspeitamos: a perda do espanto, da maravilha, daquilo que aparece à nossa vista como “milagre” insondável. Sinceramente não quero padronizar a minha cria. Quero que ela seja uma alegre e estridente novidade, uma clareira do ser, diria com Heidegger, somente “verdadeira” (aletheia) porque há uma região desse mesmo ser que constantemente se esconde, que não se mostra totalmente. Um pouco ao modo como termina Freud a sua reflexão sobre o princípio de prazer pela mão de Rückert: “Aquilo a que não podes chegar voando, podes alcançar coxeando… As Escrituras dizem-nos que não é pecado coxear.”


  



terça-feira, 15 de novembro de 2011

Slavoj Žižek ou a enxada do pensar

Žižek é um filósofo com um nome difícil (não sei ainda se o pronuncio bem ou mal) que tem tomado muitas das minhas horas de estudo “filosófico”. Um autor desconstrutor, provocador, sem deixar de ser “racional”. Contemporâneo sem deixar de responder aos desafios sapientes da modernidade. Do seu mais recente livro, Viver no Fim dos Tempos, há uma passagem que gostaria de partilhar e comentar:

“Este livro é um livro de combate, de acordo com a definição admirável e fundamental de Paulo: “Porque não lutamos contra a carne e o sangue, mas contra os príncipes, contra as autoridades, contra os que governam este mundo [kosmokratoras] de trevas e contra os espíritos do mal que estão nos céus” (Efésios 6: 12). Ou, traduzido na linguagem de hoje: “A nossa luta não é contra este ou aquele indivíduo corrupto, mas contra a generalidade dos que ocupam o poder, contra a sua autoridade, contra a ordem global e a mistificação ideológica que a sustenta.” Travar esta luta significa aprovar a fórmula de Badiou: mieux vaut un désastre qu’un désêtre [“mais vale um desastre do que um des-ser”] - mais vale um Acontecimento-Verdade, ainda que este acabe em catástrofe, do que vegetarmos na sobrevivência sem acontecimentos hedonista e utilitarista daqueles a que Nietzsche chamava os “últimos homens”. O que Badiou rejeita é, portanto, a ideologia liberal da vitimização, com a sua redução da política a um programa de evitar o pior, de renunciar a todos os projetos positivos e de escolher a opção menos má. Quanto mais não seja porque, como um autor judeu vienense, Arthur Feldmann, fazia notar, a vida é o preço que, em geral, pagamos pela sobrevivência.”

Sublinhei algumas passagens desta epígrafe: combate; desastre; des-ser; ideologia liberal da vitimização; mas não começarei por elas. Começo pelo título desta introdução: “Os espíritos do mal que estão nos céus”. Fazem-me silensiosamente lembrar o título de um livro de Fabrice Hadjadj que li há pouco tempo: A fé dos demónios. Os demónios têm fé e muita. Sabem inclusive as Escrituras na ponta da língua, para melhor delas se servirem, ao tomar como exemplo a provação bíblica de Jesus Cristo no deserto. O mal conhece o bem, sabe que há uma outra face mais inteira, mais íntegra e, por isso, mais custosa de alcançar…
Žižek é um autor profundo e profuso. Porque é capaz de ser altamente intelectual sendo consistentemente analisador do real, do quotidiano, de “descer” ao lugar onde a vida humana se dá, acontece, importa, onde se propaga cada vez mais o “des-ser”. Há, tanto quanto julgo entender, um objetivo claro em todos os seus livros: desmascarar. Tirar máscaras, as dele e as nossas… Na sua simplicidade intelectual reitera: “o capitalismo funciona cada vez mais como a institucionalização da inveja”. Essa é a sua funcionalidade: transformar a política em bio-política, esquecer os velhos combates ideológicos em prol da providência, da sobrevivência das vidas humanas: do querer, poder, ter, sentir, possuir, usufruir, gozar cada vez mais… sem freio, sem limites, sem fronteiras.
Pensar o limite do ser humano é algo que não fazemos de ânimo leve. Esquecemo-nos demasiadas vezes que existe uma fronteira que demarca o que podemos e o que não podemos fazer. Uma reflexão que relembra o trabalho da deusa Atena nas palavras de Martin Heidegger: delimita, demarca. Diz que há um risco que não podemos pisar. Mas pisamos e repisamos, sem pensar, a cada dia que passa.  É, portanto, nessa escassez de pensamento ou de exame - pois tal como disse um dia Sócrates, o filósofo, “uma vida não examinada, não vale a pena ser vivida” -, que o capitalismo funda e inaugura a dialética humana inveja-vitimização (ideologia liberal de vitimização, diz Žižek). Olho e quero ter também o que o outro tem. Se não tenho vitimizo-me, sou “coitadinha” e sem essa possibilidade de alcançar o que os outros alcançam, invejo-os. Não somos capazes de mais-ser. De um esforço e trabalho complementares que permitam o caminho da inveja ao altruísmo. Do “des-ser” de Badiou à “moral impessoal” de Nagel, por exemplo.
Explico melhor. Na obra A possiblidade do altruísmo Nagel partilha connosco uma convicção, que mais do que uma convicção é, a meu ver, um dilema moral dos mais acentuados. Partilha-o deste modo: "Posso não me preocupar com o facto de que o dinheiro que pago por uma refeição de três pratos permitiria que outra pessoa completasse uma coleção de selos, construísse um monumento ao seu deus ou tirasse alguns dias de folga, mesmo que essas coisas tenham mais importância para ela que a refeição para mim. Mas não posso ser igualmente indiferente ao facto de que esse dinheiro poderia salvar alguém de subnutrição, da malária ou talvez, de forma mais indireta, do analfabetismo ou da prisão sem julgamento." A convicção de Nagel desoculta um dos dilemas morais mais exigentes da nossa época. Dilema que exige de nós. E de facto estamos tão pouco habituados a reconhecer valor a conceitos como obrigação, exigência, autoridade que vamos preferindo a todo o momento a liberdade como libertinagem, o direito como interesse, o indivíduo como isolamento de si. Por isso Nagel argumenta a favor de uma “moral impessoal”. Um ponto de vista do indivíduo que é seu, mas que também não o é. Explica, portanto, a estrutura dessa moral impessoal como a capacidade do ser humano se abstrair de si mesmo e chegar aos outros, despersonalizando-se, sendo nessa abstração menos eu, menos si próprio. Despindo-se de si… O argumento de Nagel tem então uma sintonia com Kant. Tem como ponto de referência e de saída a universalidade. Mais uma vez moralidade e humanidade coincidem. Pessoalidade e impessoalidade cultivam-se a par, embora a segunda seja muito mais forçada, necessitada de empenho e de esforço, tendo em conta sempre uma ressalva: “sendo quem somos não podemos ir totalmente além de nós mesmos.”
Contudo, e se naufragámos, diz Žižek, no ponto-zero da sociedade, haverá ainda “possibilidade” para o altruísmo exigido por Nagel? Não andarão os demónios inteligentes (os detendores do poder) a dominar demasiadamente o céu (o mundo) para conseguirmos responder a este desafio?
Žižek furta a sua resposta a um caminho. Ao caminho da passividade, da diminuição, do hedonismo, das decisões “melhores” que o capitalismo inventa para evitar o pior, a catástrofe, a destruição. O caminho do filósofo não é o da universalidade, da impessoalidade, como em Nagel por exemplo.
O seu trilho é o da singularidade, da autonomia, a fortiori, da exclusão. Nesse trilho, se ele for acontecimento-verdadeiro, “nosso”, dá-se a catástrofe, a destruição maciça da massificação do capitalismo, como resposta ao des-ser ou ao deixar de ser humano no mundo. Pensar-alerta. O que acontece dentro de nós deve ser a verdade, diz Badiou, deve mostrar um ser cultivado e não dissimulado, cultivado pelo pensar, pelo julgar que examina a ação. Mais vale excluir, apontar o dedo ao que está mal, do que incluir valores diminuídos e apoucados como o da passiva tolerância multicultural que se expressa no argumento “deixem-nos a nossa cultura” apesar de ela ser altamente segregadora tal como podem assistir na televisão à hora do jantar... Lembram-se: “mais vale um desastre do que um des-ser”, ou seja, uma mudança excludente de paradigma do que um ser humano abafado pelo flacidez do mundo.
Comecei com Žižek, termino com ele: “Quando nos são mostradas imagens de crianças que morrem de fome em África, incitando-nos a que façamos qualquer coisa para as ajudar, a mensagem ideológica subentendida é do género: “Não pense, não politize, esqueça as causas da miséria, aja, contribua com o seu dinheiro, de modo a não ter de pensar!” Rousseau compreendera já perfeitamente a má-fé dos admiradores multiculturalistas das culturas alheias, quando, no Émile, nos alertava contra o filósofo que ama os tártaros para se dispensar de amar o seu vizinho mais próximo.”
O problema moral fulcral está na proximidade, não na universalidade. Poderia teologicamente apelar à máxima “ama o teu próximo como a ti mesmo”, contudo, não o farei. Faço somente apelo à convicção aristotélica: “é a partir do amor por si próprio que todas as disposições de afeição e amor se estendem depois também aos outros”. Ninguém é capaz de philia sem philotimia. De amor sem amor-próprio. De justiça sem si-próprio. Estes terrenos movediços da singularidade, Žižek escava-os pelo pensar e ilumina-os pelo dizer numa via sempre freudiana: a da sublimação.

Heinrich Hoerle, Máscaras, 1929

   

domingo, 23 de outubro de 2011

A filosofia é perigosa? É, e é bom que seja!

Numa obra elementar de introdução ao trabalho filosófico, Karl Jaspers diz o seguinte acerca dessa “deusa”, inicialmente grega, mais próxima de Atena do que de Afrodite, a filosofia:  


“Por uma questão de respeito pela tradição, é-se polido com a filosofia, mas, lá no fundo, não se lhe liga nada. A ideia feita é a de que ela não serve para coisa nenhuma. Podemos mesmo perguntar se ela não é já qualquer coisa de residual. Esta antipatia é visível em fórmulas como: a filosofia é demasiado complicada; não percebo nada; andam nas nuvens; isso são questões para especialistas; não tenho inclinação nenhuma para aquilo; é coisa que não me atrai minimamente.
Esta oposição pode revelar-se obstinada. Um instinto vital, oculto a si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu viesse a compreender alguma coisa, por pouco que fosse, isso implicava que eu “mudasse de vida”. Ver-me-ia com um outro estado de espírito, olharia para muitas coisas de um ponto de vista diferente, sentir-me-ia na necessidade de rever todas as minhas ideias. Filosofia?, nem pensar!
Segue-se o coro dos críticos que querem substituir a filosofia, coisa demodé, por qualquer outra coisa nova, verdadeiramente fraturante! Aliás, eles sabem que se não tiverem a filosofia por perto, o seu trabalho rende mais… É possível, em paz e sossego, trabalhar na manipulação das massas. É urgente impedir que as pessoas pensem pela própria cabeça.
As convenções, o hábito de julgar que o bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, a vontade ilimitada do poder, o fanatismo das ideologias, o compadrio dos políticos, tudo isto se revela na anti-filosofia. Esta gente não se apercebe disso porque não o compreende. Eles não se dão conta de que a sua anti-filosofia é em si mesmo uma filosofia, só que uma filosofia pervertida. O problema é, no fundo, o seguinte: a filosofia quer autenticidade nas coisas e eles não. Está visto, a filosofia incomoda mesmo!”
Karl Jaspers, Initiation à la méthode philosophique, Payot, pp. 142-143.

Incomoda mesmo Jaspers? Incomoda pois, mas tem incomodado pouco. Ser menor, cómodo, passivo, encostado é tão mais fácil e universalizável, adaptável à fluência indistinta do mundo e da vida do que o trabalho do pensar, do “pôr-se a pensar”. Jaspers fala-nos da perigosidade da filosofia, da “canseira” que ela nos traz… Também Kant o sintetizou há muitos anos: “é tão cómodo ser menor”. É mesmo. Até para os filósofos.
No entanto, é preciso referir que os textos de filosofia sobre a filosofia não são mais pensantes pela quantidade de obras que citam e divulgam, mas sim, e sobretudo, pela qualidade do pensar que tem em linha de conta a seguinte pergunta: afinal o refletir da filosofia incomoda ou não? Desestrutura, abala, ou não, a dissonância, o erro, a dúvida, o preconceito, o hábito, os costumes?
Cabe, antes de responder à pergunta proposta, reiterar que ao conceito de filosofia agrega-se um outro, a ele geminado e inalienável: o conceito de crítica. Crítica que desprotege e põe à prova “as convenções, o hábito de julgar que o bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, a vontade ilimitada do poder, o fanatismo das ideologias, o compadrio dos políticos.” E antes de apontar o dedo ao político e à sua elite economicista, apontemos primeiro a mão toda a nós próprios e pensemos o modo como vivemos, “sonhamos”, o nosso bem-estar. Será ele bem-viver?
Reflitamos um pouco acerca da mais quotidiana das suposições: “E se me saísse o euromilhões?” Os olhos humanos brilham à mesa do café, do restaurante, à saída do Continente e aí, nesses lugares-comuns, desalinhavam-se sonhos: carros, casas, piscinas, relógios, joias… Caraíbas. A questão material impõe-se: será que posso ser vizinha do Cristiano Ronaldo? E aí tudo borbulha, torna-se mágico. Agora, e antes de irmos ao compadrio político, pensemos a primeira suposição dita de um modo completamente diferente, mais profundo talvez: “E se eu me tornasse melhor pessoa?” Os olhos humanos certamente deixariam de brilhar, a sobrancelha levantar-se-ia e esperaria-nos a seguinte questão: “O quê?” A questão da dúvida. As pessoas estranhariam a nossa atitude, poderiam não dizer, mas, certamente, pensariam à boa maneira alentejana: “Esta não passa cá outro Inverno!” E não passa, pelo menos não da mesma forma, vivendo da mesma maneira. Isto porque mudar a forma como olhamos o mundo e a vida, reconhecer que andamos a vivê-la em tom diminuído, é um dos passos fundamentais para que nos coloquemos dentro dela e a refletir sobre ela, em autenticidade, em profundidade, com outro estado de espírito. Outra “forma” na qual cozemos o nosso próprio bolo: o interior.
Ao início de cada ano letivo é este texto de Jaspers que apresento aos meus alunos como pórtico do que é a filosofia e de como a entendo. E um deles disse-me em tom convicto: “professora, o problema está no consumo, na forma desmedida como gastamos os nossos recursos ou não os tendo recorremos ao crédito.” E porquê, pergunto eu? Porque queremos a semelhança futura do que não somos: ricos, famosos, visíveis, invejados, sociáveis, desejáveis, no fundo, fazermos o que nos dá na real gana sem pensar nas consequências das nossas ações.
E terá este estado de sítio humano – demasiadamente desumano - consanguinidade com o compadrio político? Tem, e tem muito. Esse ter de viver dimínuido na esperança da futura maximização da abundância, da riqueza, impossibilita a habitação humana do espaço público, e desvirtua-a num constante querer ser outro, não nós próprios. Vivemos além, não em si, não em nós. E é nessa utopia negativa de nós próprios que vamos anulando e relegando um “mudar de vida” ao ter na lembrança a música dos Humanos. Ao fim e ao cabo, os políticos aproveitam-se dessa perda da identidade pessoal, da autonomia dos seus cidadãos e cidadãs, e desgovernam-se a nós e a eles próprios. Quando nos tornamos escravos do consumo e incapazes de a ele reagir, confundimos bem-viver com bem-estar, ter muito, uma multidão, com ser pouco, no meio da multidão. A política como “governo de todos” torna-se política de muitos e, nesse horizonte, a crítica esvai-se no tagarelar banal das revistas cor-de-rosa: num estar e ser alguém que não somos, mas que desejamos ardentemente ser.
Pensar sobre a política torna-se demasiadamente exaustivo, faz mal à pele, exaure a nossa beleza. E o tempo que nos rouba? Enfim…
É por esta e outras razões que a filosofia é perigosa. Ela é perigosa e é bom que o seja. Ela imiscui-se no dado, no hábito, no que é costume fazer-se e dizer-se, nos preconceitos preguiçosos que em nós se entranham, consciente ou insconcientemente. Através do seu poder crítico dizemos: está mal, não é assim, muda lá essa maneira estreita de ser, sê de outra maneira. Transforma-te… transformemo-nos então pessoas e políticos dignos desse nome, movendo as regiões infernais (acheronta movebo) que Sigmund Freud dizia ser, na abertura da sua Interpretação dos Sonhos, o lado subterrâneo dos costumes que inconscientemente pautam a nossa vida quotidiana. Clarear é o trabalho “perigoso” do filósofo, mas é também uma vereda “salvífica” que se reveste de crítica e de convicção, numa palavra final jamais finalizada, de pensamento. 


Frida Kahlo, 1949
The Love-Embrace of the Universe, the Earth (Mexico), Me, Diego and Senor Xólotl
Mexico City, Collection Jacques & Natasha Gelman

domingo, 16 de outubro de 2011

"Nocturno a duas vozes" de Eugénio de Andrade

- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação...

- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que os meus dedos têm
para colher na noite.

- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento...

- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.

Eugénio de Andrade (1987), Poesia e Prosa [1940-1986], 3.ª edição aumentada, volume I, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 104-105.  

sábado, 15 de outubro de 2011

Curiosidades óticas...


Ontem à noite revi o filme Inception de Christopher Nolan (http://www.youtube.com/watch?v=66TuSJo4dZM&noredirect=1) e é curisosa a similitude que estabeleci entre o filme "revisto" e algumas das obras de Escher que tive o prazer de ver na galeria da Fundação Eugénio de Almeida há uns meses atrás. Ambos "falam" acerca da sublimidade de um inconsciente paradoxal, mas criador, aterrador, mas magnânimo. Capaz de nos fazer sucumbir ou salvar.

Porquê palavras inconjuntas?

A nomeação deste blogue inspira-se nos Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro, especificamente num dos seus poemas "Criança desconhecida", o meu predileto:

"Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta."

Inspirada no poetar de Caeiro, sugiro assim pensar filosoficamente acerca do risco de nunca pensarmos nada absolutamente, isto é, com a pretensão do saber absoluto. Quando começamos algo, nunca começamos absolutamente e sim experiencialmente, relativamente a... A história é sempre o passado que nos diz quem somos e a filosofia diz-nos porque somos (e, também, porque deveríamos ser - melhores). Nesse risco reside, todavia, a possibilidade do saber filosófico. Um saber lançado para o que "há": para a poesia, a pintura, a política, a religião, o conhecimento, a tecnologia, no fundo, para o ser humano, o seu grande universal, embora "universal finito". E há bem pouco tempo numa conversa com um colega sobre o estatuto e o lugar da filosofia no mundo ele dizia-me "em filosofia nunca podemos escapar ao rigor das categorias" e eu concordei, mas ripostei: também nunca podemos furtar-nos à circunstancialidade do mundo, sair de si sem sermos acusados de solitários ou alienados (embora essa solidão ou alienação possa ser voluntária).
Uma das características fundamentais da filosofia é a sua tarefa radical em determinar algo conceptualmente, construir ou desconstruir ideias, analisando-as. Erradicar a dissonância, o preconceito, o erro, a dúvida pela lógica argumentativa do pensar procurando, nesse caminho, as várias "clareiras do ser" que se nos apresentam. Aqui Descartes e Heidegger não estão tão longe quanto advogamos. A filosofia determina, mas também prova, provoca. Não no sentido científico, mas sim vivencial. Quando digo que o pensar é uma provação é porque ele nos incita a prescrutar uma determinada realidade não certa e sim ilógica. Platão dizia num dos seus diálogos, Teeteto, que a filosofia nasce do espanto e eu acrescento: nasce de um espanto maravilha ou revolta, tanto no sentido positivo como negativo. O que ainda não é nosso, dá que pensar. O que ainda não sabemos, espanta-nos: sentimo-nos maravilhados ou revoltados com (com esse algo que a filosofia constrói ou desconstrói).
Por isso, Caeiro diz "vale mais a pena ver uma coisa pela primeira vez do que conhecê-la". Conhecê-la é ter ouvido contar. É apenas encadeamento, mostração, determinação pensante. É averiguar o que nos aparece, é conhecimento "contado". Em minha opinião, e de acordo com Caeiro, o poeta mais "anti-filosofia" por mim conhecido, o saber filosófico é também e ainda de outra ordem: da ordem do mundo, do quotidiano, da ação. O quotidiano é o seu laboratório, a vida real o seu campo de estudo. Senão não faria sentido dizer, por exemplo, que a ética é a moral pensada sobre a moral vivida e que o pensar se configura na imagem da provação. Um saber que é posto à prova porque questiona a realidade, julga-a, nas figuras da humanidade ou da desumanidade. E aí, neste último momento, reside a sua revolta, o seu descontentamento, um dos "principiares" da sua reflexão: o da revolta sim, não o da maravilha que toca o belo e o sublime. Saber o que é a filosofia, o seu sentido vivencial, é nunca esquecer as seguintes palavras de Ortega y Gasset no seu texto "Ensimismamiento y alteración": "enquanto o tigre não pode deixar de ser tigre, não pode destigrar-se, o homem vive em risco permanente de se desumanizar: ao homem sucede-lhe às vezes não ser homem". Este é um dos riscos sobre os quais a filosofia reflete, pensa, e de que dá provas em prol da humanização. É um trabalho de vigília, diria o meu amigo. É um trabalho de provação.