segunda-feira, 26 de maio de 2014

As brechas do político: de Le Pen a Francisco







Os resultados das eleições europeias são preocupantes, quase todos nós já percebemos isso, pelo menos aqueles que ainda têm o bom senso de se preocuparem com o mundo que os rodeia. São alarmantes, pelo menos parece-me, a dois níveis: no primeiro, pela evidência do descrédito dos eleitores (na maioria dos países europeus) em relação à classe política, simplesmente, calando a sua voz. Quando o que está apenas em jogo na política, para a maioria das pessoas, é a vida e não o mundo, invertendo a máxima arendtiana, de pouco nos vale, pensamos, participar politicamente. Guardemos ainda (isto dito em tom de ironia) o que podemos salvaguardar para nós próprios, pelo menos o nível da sobrevivência. «Queremos as nossas vidas» dizia o lema contra a Troika que circulou em Portugal durante vários meses. E é precisamente este nível de sustentabilidade económica e do medo que temos que os outros roubem aquilo que é nosso, que conduz ao segundo nível que nomeei também ele de alarmante: o do crescente pensamento «cerquista» de guardar as nossas casas, as nossas nações, os nossos iguais (os nossos) e com essa similitude assistir passivamente à ascensão da extrema-direita em países-chave da União como a França e a Alemanha. «É preciso que a França vá ao encontro daqueles que sofrem» dizia Marine Le Pen nas anteriores eleições presidenciais francesas em 2012, as quais perdeu a desfavor de Hollande, ficando ainda atrás de Sarkozy. Mas Le Pen sabe-o bem, e todos percebemos, é preciso que «aqueles que sofrem» sejam franceses e não de uma outra qualquer nacionalidade. A senhora sempre frisou isso muito bem: a França é para os franceses que sofrem, não para um qualquer ser humano que sofra. Mensagem recebida!


Logo ao início deste texto, partilhei convosco duas imagens que me fizeram refletir muito durante todo este dia. A foto da gargalhada desabrida de Marine Le Pen após a vitória do seu partido nas eleições de ontem e a lição do Papa Francisco encostado ao muro da Cisjordânia hoje em Israel. Não percebi bem se estava do lado de Israel ou do lado (do designado Estado-não membro pela ONU) da Palestina. Pois é, saberemos nós de que lado estamos quando estamos diante de um muro? De quanto mais tempo vamos precisar para perceber que o universal, como dizia o nosso grande poeta Miguel Torga, é o local sem os muros? Sem as fronteiras, sem as barreiras? A memória curta, a falta de consciência histórica que hoje tantos criticaram, de que não nos lembramos da nossa própria história, de que isto vai pelo mau caminho, está ali bem cimentada naquele muro da Cisjordânia, que não deveria sequer existir. Tenhamos esperança de que daqui a alguns anos esteja um pedaço dele ao lado do pedaço do muro de Berlim que está em Portugal, precisamente no Santuário de Fátima. Francisco deu-nos a lição que todos nós, os europeus, precisávamos, uns perceberam a mensagem, outros não. Mensagem recebida!    


Há bem pouco tempo vi o filme dedicado à vida de Ghandi, no qual, no final, ele diz muito simplesmente que a verdade acaba sempre por se revelar historicamente. Vem ao de cima! Por muito sangrenta que seja a guerra, por muito doloroso que seja o mal, o bem acaba sempre por manifestar-se, na sua pequena clareira, ou melhor diria, na sua brecha. É preciso admitir essas brechas no discurso político, é preciso que elas nele irrompam e que o desconstruam se tal for necessário. Até John Rawls, um dos mais incontornáveis filósofos políticos do século XX, o admitia. É preciso que onde a razão pública falha, isto é, onde ela não chega ou alcança, outros discursos como o religioso, o poético ou o artístico, tenham ainda uma última palavra a dizer. Por isso, relembrava Rawls, Lincoln lançava quase sempre mão de textos das Escrituras para se posicionar francamente contra a escravatura que dizia ser desumana. Ninguém deveria viver simplesmente para sobreviver. Ninguém deveria fazê-lo. Mas alguns fazem-no e até voluntariamente. Assim e enquanto não percebermos que na política o que está em jogo é o mundo e não a vida, agora sim com Hannah Arendt, o preço que pagamos por essa dedicação única à sobrevivência será certamente alto. Será certamente o preço da própria vida, que não têm preço, mas sim dignidade. Mensagem recebida?

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Crescimento ou decrescimento? A proposta filosófica de Serge Latouche






No passado dia 25 de setembro, um conjunto de intelectuais espanhóis - Victoria Camps, Adela Cortina e José Luis Delgado - publicou no jornal El País um precioso documento de opinião, do Círculo de opinião cívica, sobre a realização de uma democracia de qualidade perante os tempos de fratura, de crise, que hoje vivemos: “Democracia de calidad frente a la crisis” versa o título. Sabemos que os nossos tempos são descarnados disso mesmo: de tempo, de tempo de qualidade, em que a memória e a demora possam ter efetivamente lugar. Tudo é novo e acelerado. Ouvir os outros, escutá-los, reconhecê-los enquanto mestres da justiça, como diria Ricoeur, parece hoje ser mais difícil do que nunca. A pretensa liberdade, a duras penas conquistada e a bem da segurança própria, parece hoje mais ameaçada e insegura do que nunca, mais fugaz e desenraizada, desvinculada de si e dos outros. Esquecemo-nos de muita coisa: do mundo, dos outros, da natureza ou, com Ortega y Gasset, da circunstância. A expensas de uma independência capaz, auto-suficiente, desembocámos na fragilidade, no tédio e no medo - não sabemos é bem de quem e do quê. A nossa vida parece controlada de fora, embora dentro de um mundo onde tudo se globalizou. Um mundo sem arredores. Sem fronteiras. Um mundo onde não sabemos bem quem somos e muito menos quem devemos respeitar, o que devemos respeitar e porquê. Um mundo onde tudo parece estar permitido e certo. A sociedade de informação, desinformou-nos, a sociedade do conhecimento, toldou-nos. Ambas aguardam serenas que o capitalismo passe despercebido, que as pessoas se submetam cada vez ao totalitarismo do consumo e à sua lógica de crescimento infinito, baluarte do liberalismo - não social, mas desleal. Todos acusamos o governo, todos acusamos as estruturas do poder e as suas instituições, mas esquecemo-nos de que a verdadeira revolução deve primeiro acontecer dentro de nós, ganhar sentido e sentidos de singularidade e depois, aí sim, expandir-se numa nova conceção e ação do bem comum, da partilha daquilo que nos é comum. 
No documento do Círculo de opinião cívica espanhol, que poderia bem ser português ou europeu, o primeiro e o último princípio de uma democracia de qualidade, assim verdadeiramente apelidada, pressupõem precisamente a busca e a partilha do bem comum. O primeiro: perseguir um bem comum: e o segundo: construir um quadro de valores comuns. O filósofo parece deixar de pregar no deserto e aos poucos vai fazendo com que o seu humanismo se adentre nos meandros da política económica ou, melhor, da economia que se serve da política para se servir. Para servir interesses privados, fins privados, que se servem do capital de todos para usufruto e lazer próprios. Sem ética, sem moral, sem atenção à circunstância. Sem responsabilidade pelas suas ações, venham elas do campo da economia ou da política, lugares sociais onde um pedido de desculpas assinado em nome próprio parece sarar quase tudo. Mas não sara. O povo tem voz, embora as massas nem sempre tenham verdadeiras alternativas, assumidas e respeitadas por todos, pensadas com cabeça, tronco e coração, contra a lógica de mercado em que estamos mergulhados, adormecidos. 
Porém, o que fazer contra todo este estado de coisas e de pessoas? Contra as crises, as fraturas, os deficits que não conhecemos bem e que nos parecem distantes e incontroláveis? 
Uma das primeiras atividades a promover é o pensamento. Pensar, ponderar, averiguar, discernir, pesar o que se passa de mau e o que pode vir a piorar, ou melhor, a melhorar tendo em conta a concorrência da nossa ação. O liberalismo económico é hoje o mal menor das sociedades. O seu capitalismo é maleável a todas as realidades políticas: democracias, oligarquias, ditaduras, imperialismos e afins. É como um polvo sem nome que manobra a sociedade e que nos inclui a todos nessa inversão. E nessa transmutação de todos os valores, inclui o significado da nossa vida, o sentido que lhe damos ou que neste caso esquecemos de lhe dar. Imersos na segurança do consumo, no supérfluo criado necessidade, deixamos de saber reconhecer o valor real das coisas, dos objetos e caímos na linearidade do progresso, na busca desenfreada de mais desenvolvimento, até mesmo do mais supérfluo existente. Ainda hoje passou uma reportagem na televisão sobre um hotel de luxo para cães inaugurado há poucos dias em Nova Iorque. Eu não tenho nada contra os animais, pelo contrário, mas o meu humanismo filosófico, embora não antropocêntrico, sentiu-se atingido perante aquela barbaridade, na falta de um adjetivo pior. Sinceramente. Seria bom crescermos um pouco em humanidade e vermos toda aquela informação com olhos de ver. Verdadeira injustiça, inumana contradição.  
Temos de facto ainda muito para aprender com a filosofia, com as humanidades e o seu saber. A filosofia não é dona da verdade absoluta, nunca o será; mas pelo menos ajuda-nos e auxilia-nos a perceber o seguinte: o humanismo não é uma alternativa às sociedades da ciência e da técnica, não é uma alternativa à tecnociência. O humanismo é um bem de primeira necessidade que deve, a todo o momento, tentar e conseguir examinar os pensamentos apoucados de uma visão economicista do homem. A filosofia não tenta somente responder à pergunta quem é homem?; tenta também responder à pergunta quem somos nós? e nessa demanda conseguir esclarecer os caminhos efetivos do bem comum, do que nos une e é nosso, além de “meu”. 
A propósito desta temática, terminei hoje de ler o livro Pequeno tratado do decrescimento sereno de Serge Latouche, leitura viva que aconselho vivamente. O livro é de uma clareza colossal sem deixar de ser pertinente ou im-pertinente. É conciso, sem deixar de colocar em causa a sociedade consumista de hoje do ponto de vista do humanismo. Tal como o autor defende, o decrescimento é um projeto político que põe em causa o capitalismo, mas não só. Vai além de Marx, criticando-o. Latouche diz que é impossível ser contra o capitalismo e a favor do desenvolvimento baseado na lógica de uma economia de mercado. Precisamente porque é a lógica do progresso técnico-científico que coloca em marcha e sustenta o capitalismo. Marx não se apercebeu disso e continuou a demanda iluminista de mais e melhor progresso, continuou o sonho de um homem liberto da produção e do trabalho. Não podemos ter desejos ou necessidades infinitas num mundo finito, num mundo que pode colapsar pela lógica errada do crescimento: "Os ganhos de produtividade foram sistematicamente transformados em crescimento do produto, e não em decréscimo do esforço." Não existe mais a ideia de um homem liberto do trabalho como queria Marx, existe sim o homem subjugado ao trabalho sedento de mais e mais consumo (todos, também me incluo).
Nesse caso, como invertemos esta sede desenfreada de mais capital? De crescimento infinito e seguro num mundo finito e inseguro? Latouche responde: "temos de voltar a reencantar o mundo" a respeitá-lo na sua unicidade. Temos de voltar a valorizar o mundo, a vida, as coisas e as pessoas, sem as banalizar. Pensar que a amizade e o conhecimento são bens comuns que devemos partilhar. São sabedoria prática e teórica comum que precisamos de promover para nosso próprio bem e para o bem da nossa comunidade e, acima de tudo, a bem da continuidade do nosso mundo. A Terra é finita, os nossos anseios e desejos infinitos. Por esse motivo e para terminar, Serge Latouche vai ao encontro das palavras de Kenneth Boulding, também economista, e diz o seguinte: 

“Num artigo de 1973, [Boulding] opõe a economia do cow-boy, em que a maximização do consumo se baseia na predação e na pilhagem dos recursos naturais, à economia do cosmonauta, “para a qual a Terra se tornou um veículo espacial único, não possuindo recursos ilimitados, seja para dela os retirar, seja para nela vazar os seus poluentes.” Quem acreditar que é possível o crescimento infinito num mundo finito, conclui ele, ou é louco ou economista.” 

O decrescimento é um projeto político, uma utopia humana concreta, porque humanista, que visa restabelecer os vínculos de sentido entre a natureza e os seres humanos e dos seres humanos entre si, procurando assim vencer “a banalidade económica do mal”. Ultrapassar o estilo de vida que o consumismo impõe, e ao qual de bom grado vamos aderindo, pressupõe pensar e avaliar, sóbria e serenamente, outras formas de habitar a realidade e, por sua vez, habitá-las. Uma leitura que obriga a uma releitura nem que seja de nós próprios. 

sábado, 11 de agosto de 2012

Antes da Partida

   Paula Rego, À janela, 1997


"Nas estações de comboios do centro,

por onde passam os do norte a caminho do sul, os do sul

a caminho do norte, os de leste para oeste e

os de oeste para leste, e todos em toda

e nenhuma direcção, vendem-se jornais de todas

as línguas possíveis. Volto os escaparates

para ver os títulos, toco nos papéis, entre

os bons e os maus, os ricos e os pobres, os que

trazem suplementos e os que se limitam a poucas

páginas de informação e anúncios: e cada um

desses jornais é um mundo, vidas a que nunca terei acesso, 

histórias que começam e acabam numa coluna

interior, em meia dúzia de linhas. Sei, no entanto

que o amor e a morte, apesar das línguas diferentes, 

são os mesmos em cada uma dessas notícias; que

as tragédias e as alegrias se contam com o mesmo

estilo, e só o título dá ênfase à emoção

que desaparece com a leitura. Não preciso, por isso,

de ler todos os jornais, de uma ponta à outra, 

nem de saber todas as línguas do mundo, para conhecer

a realidade do homem. No entanto, ao rodar 

os escaparates, sem olhar de facto o que eles mostram, 

apenas para misturar emoções e frases, palavras

e imagens, faço rodar um dia inteiro, sem saber porquê

ou apenas porque é esse, finalmente, 

o movimento do mundo."


Nuno Júdice, O movimento do mundo, p. 120. 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Economia sem ética ou economia sem pessoas?



Sapatos, Vincent Van Gogh


Num artigo publicado no Jornal El País, intitulado “Economía sin ética", Adela Cortina acusa e critica o modelo moderno de economia empresarial, uma economia “sem pessoas”, que foi paulatinamente esquecendo a sua responsabilidade para com a sociedade afastando-se cada vez mais dela em prol do lucro, do consumo. Este parece ser hoje o único caminho feliz, conducente à boa vida, não à vida boa. E passamos do grande irmão ao grande engano…. Por sua vez, Cortina diz o seguinte e pergunta:  

“En el documento de la última cumbre del G-20, los líderes mundiales hacen una afirmación asombrosa: “Reconocemos la dimensión humana de la crisis”. Pero ¿es que ha existido alguna vez una actividad económica sin dimensión humana? ¿No es cierto que la economía ha de ayudar a construir una buena sociedad y, cuando no lo consigue, fracasa rotundamente, teniendo en cuenta que esa buena sociedad hoy ha de ser mundial?”

A bota que sempre nos quiseram calçar, aquela que pretendia maximizar a felicidade para o maior número de pessoas através dos bens materiais, da riqueza económica bem distribuída gastou-se, falhou. E hoje reconhece-se “a dimensão humana da crise”. Voltemos então às pessoas e esqueçamos a economia. A crise é bem mais profunda e incide precisamente no “modelo” de pessoas, na mentalidade que sempre lhes incutimos durante anos e que agora queremos transmutar. Por isso, e para além de uma economia sem ética, sem uma forma certa de distribuir coisas, devemos antes falar de uma economia sem pessoas, ou seja, sem uma forma certa de valorizar as coisas, sem capacidade para estabelecer a fronteira entre o necessário e o supérfluo, a boa vida e a vida boa. Tal como refere Adela Cortina, a economia tem por obrigação ajudar a construir uma boa sociedade, a emancipá-la, e não recorrer à redução, ao esvaziamento do pensar em prol da estandardização do ser humano, da própria sociedade esquecendo a responsabilidade. É esse o “modelo” filosófico, tão fácil de absorver, que está por detrás de uma economia de mercado. Libertar as pessoas de uma certa forma de obediência que as obrigue a pensar nos outros, em responsabilizar-se por eles, eclipsando-se do mundo. Já diz Zizek no seu livro Viver no fim dos tempos e di-lo mais ou menos assim: façam donativos para os meninos pobres de África, já que esse donativo ajudar-vos-á a não pensarem na causa efetiva da pobreza. Contribuam, mas não pensem, não apontem o dedo, essa crítica não vos levará a lado nenhum.  
É interessante que enquanto lia este artigo de Cortina que convosco partilho, estava ao mesmo tempo a reler o livro Justiça: fazemos o que devemos? de Michael Sandel. Um livro cujo tom reflexivo tenta enlaçar justiça e bem comum, direitos e deveres, ou se preferirem, economia e responsabilidade. Segundo Sandel devem existir sempre brechas tanto no discurso político quanto no discurso económico. A justiça como distribuição de bens deve ser colmatada pela visão de que a justiça é um bem, o maior dos bens, e não deve estar somente sujeita ao discurso legal ou legítimo dos direitos humanos e das suas distintas gerações. Essa brecha é alinhavada pela crítica e pelo empenho moral, os quais devem ser sempre parte integrante da pergunta pela justiça. À custa de tanto delegarmos as nossas decisões morais nos outros, temos vivido de facto muitos dramas pessoais. Esquecemo-nos de que a “costura” da justiça é singular, humana, pressupõe um cerzir que é só nosso e, portanto, insubstituível. Mas será que temos assim tanta margem de manobra, ou de ação, para sermos singulares? Humanos? Para decidir moralmente? Para ser pessoa, independentemente da política ou da própria economia? Em suma, será que sabemos fazer a coisa certa, apesar do errado que nos rodeia e consome? Consome no consumo?
 “Fazer a coisa certa”. É esse o dilema que Sandel nos propõe no início da obra Justiça: fazemos o que devemos? Inicia-a com a reflexão acerca do furacão Charley que se abateu sobre a Florida em 2004. “Após a tempestade vêm os abutres” rezava o USA Today. E expressava-o porque, após a tempestade, houve um aumento brutal na especulação dos preços: 23 mil dólares para retirar uma árvore do telhado de uma casa, 500 doláres por um quarto de hotel, onde o normal seria a cobrança de 40 doláres, entre outros episódios. Aqui não se fez a coisa certa. Independentemente do sofrimento e das necessidades das pessoas os preços aumentaram levando ao desespero e à ira pública de muitos. Indignação. Bem diz Aristóteles na Ética a Nicómaco que a ira é o exemplo paradigmático das emoções e o primeiro motor da justiça, ou seja, o despertar “cardíaco” e emocional perante a injustiça. Quem se aproveita desta especulação “não tem coração” perante o sofrimento das pessoas, apenas vê números e essa é a situação alarmante que hoje se perpetua: se os outros fazem porque é que eu não hei-de fazer? Não vale mais a pena sermos todos injustos, já que o mundo é já de si injusto? Economia sem pessoas?
Em todo o caso não precisamos de ir à Florida para exemplificar este distanciamento entre mercado livre e humanidade. Basta pensarmos no caso português quanto ao aumento constante do preço dos combustíveis. O governo português sabe que esta situação asfixia pessoas e empresas, mas nada pode fazer, diz. Alheia-se da situação com o argumento do Estado mínimo que tudo privatiza, enquanto guarda nos seus cofres as contribuições das gasolineiras, pagas por nós. Concorrência não existe, mas cartelização há muita e já todos nos apercebemos disso. Os bancos continuam a ter lucros exorbitantes, as gasolineiras também. E eles próprios o expressam embora sub-repticiamente: das pessoas eclipsemo-nos, até porque elas já se eclipsaram de si próprias. Perderam não só a sua casa (oikos), mas igualmente a sua morada (êthos). Tudo se globalizou e mundializou. E a singularidade estilhaçou-se. E essa é, a meu ver, a pior de todas as crises. A crise que afecta a nossa individualidade nos interstícios da globalidade. Que esquece e engole, por antonomásia, o homem comum. E não quero com isto dizer que o social não seja importante, mas se não formos capazes de a partir da nossa liberdade colocar as regras do jogo em jogo, criticá-las, a “choldra ignóbil”, para lembrar Eça, continuará a comandar-nos e comandará sempre.


domingo, 1 de abril de 2012

Poema Verniz - Mia Couto



Canção Meridional, Giorgio de Chirico



"No degrau da rua,
a moça pinta as unhas.

Dobrado em lua,
seu corpo tem a delicada intenção do ourives:
na decimal tela das mãos
inventa lábios
que o destino virá beijar.

Fadigosa obra,

tão incontáveis os dedos da vaidade.

A moça demora-se
mais que a derradeira luz
e as velhas passam e benzem-se,
limpando lembranças
de suas primeiras mãos.

Afinal, não é o corpo
o que a menina pinta.

O verniz vermelho,
como salpicados coágulos.
lhe amortalha o gesto.

Debaixo da tinta
uma morte se oculta:
a sua,
da menina tão menina
que nem precisava de ser linda."

sexta-feira, 30 de março de 2012

Da justiça como autonomia



A conquista do filósofo, Giorgio de Chirico


(Depois de alguns meses como bloguista, partilho hoje convosco um texto sobre Adela Cortina. Ainda não a tinha referido nas minhas lides cibernéticas. Este texto é fruto da minha intervenção no Colóquio Crise e Civilidade que se realizou dia 29 de março de 2012 na FLUP)



Da justiça como autonomia
O conceito e a conceção de civilidade de Adela Cortina 

“Mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades”.
É este o mote camoniano de Mia Couto n’O último voo do flamingo. Palavras poéticas que elucidam, logo à partida, a fragmentação entre o pensamento e a ação, ou para dizê-lo já com Adela Cortina, entre as filosofias kantianas e um povo hobbesiano ou até menos hobbesiano do que alguma vez Thomas Hobbes pensara. Nas palavras de Paula Pereira, em diálogo com Hölderlin, “É quando o mundo se torna mais problemático, é quando o nosso mundo perde sentido e consistência, que a filosofia recomeça. A filosofia nasce especialmente em tempos de desamparo.” A situação crise afeta política, economia, cidadania, civilidade, vontades e vontade. Autonomias que se desnudam numa acrasia crísica comum, cujo espaço-tempo dá que pensar à filosofia munida do seu mais geminado conceito: o conceito de crítica. Crítica das instituições e das pessoas na medida da justiça. Na medida da humanidade. 

Da justiça
O conceito e as conceções de justiça multiplicam-se através do poder das ideias. Advindas dos vários gabinetes e debates académicos, cuja raiz política é fruto da República platónica, elas bem ditam o que deve ser a justiça na tríade liberdade-distribuição-igualdade. Um dos exemplos contemporâneos mais férteis dessa idealização é a obra Uma Teoria da Justiça de John Rawls. O grande objetivo de Rawls é a fundamentação de uma “sociedade bem ordenada” assente em princípios corretos, válidos para qualquer político, juíz ou cidadão. Progressivamente entendida, a dinâmica das instituições tornará mais justa a prática da cidadania ao inspirar cidadãos menos egoístas e desinteressados de si mesmos.
Para tal servirá a ficção ou a hipótese da posição original

“A posição original é definida de tal forma que representa um status quo no qual quaisquer acordos alcançados são justos. É uma situação em que as partes estão representadas igualmente como pessoas morais e o resultado não é condicionado por contingências arbitrárias ou pelo equilíbrio relativo das forças sociais.”

E a imaginada posição serve para estabelecer a diferença entre 1. as doutrinas compreensivas de bem comum (que todas as pessoas reconhecem num determinado projeto de vida, na sua profissão ou religião por exemplo); e 2. a compreensão universal da ideia de justiça a promover pelas distintas instituições sociais. A favor da neutralidade de justificação do que é justo suspende-se a vida boa à maneira da êpoche husserliana. E assim perante esta suspensão e distinção, sobretudo contra elas, pergunto: Não será a justiça a virtude que melhor expressa a ligação entre a bondade e a inteligência? Não é ela o maior dos bens? Porquê submetê-la somente ao correto funcionamento das instituições sociais, transformando o direito na tarefa primordial da filosofia?
Antes das respostas, apresento os dois princípios da justiça de Rawls: 1. princípio de liberdades fundamentais para todos (equal liberty), e 2. princípio da igualdade de oportunidades o qual pressupõe o princípio da diferença (difference principle). Este segundo princípio expressa-se numa bipartição de objetivos: a) igualdade de acesso aos mesmas cargos e benefícios e b) igualdade distributiva dos bens económicos, mormente rendimentos e riquezas. Estes dois princípios da justiça surgem quando as partes da posição original se sujeitam e pactuam sob o “véu de ignorância”, ou seja, no desconhecimento em relação à sua vindoura posição social. 
Relembrando Max Weber, a ideia de justiça de Rawls responde ao apelo de uma ética da convicção, deontológica, desinteressada do contexto e da sua contaminação. Uma ética sem moral, diria Adela Cortina, distante da ética da responsabilidade, da ponderação entre os meios e os fins e das suas previsíveis consequências. Rawls pretende precisamente tornar a filosofia moral algo não-avesso à prática e à retórica políticas, tornando esta última mais intelectual e inteligente. Contudo, essa demanda acaba por colocar a ética contra a própria moral fechando-a numa reflexão transcendental das instituições radicalmente distante das nossas conceções morais, em última análise, de nós próprios. 
            Ficamos assim perante o dilema: “Rawls e para além de Rawls”. É este o título que Amartya Sen dá a um dos capítulos da obra A ideia de justiça que dedica a John Rawls. No entanto, a sua argumentação parte desde logo de um paradoxo, à partida, irreconciliável: o da relação entre a institucionalização transcendental da justiça e a sua realização comportamental. A pergunta à qual Sen diz ser imperativo responder não é a da condição de possibilidade a priori da justiça. É a da capacidade ou das capacidades que estão em jogo na redução do seu contrário: a injustiça. O juízo comparativo valerá então mais do que a posição original e a sua ficção. A circunstância que se pondera e critica valerá mais do que a teoria que se deseja. De facto, posso saber na ponta da língua o que é a posição original, a equidade, a liberdade, a igualdade, a justiça, mas sem realização crítica desse saber jamais conseguirei responder à pergunta fulcral de Sen: afinal, como podemos reduzir a injustiça?
A métrica da igualdade social, examina Sen em relação a Rawls, não pode centrar-se apenas na distribuição de rendimentos e riquezas. Como avalia João Cardoso Rosas sobre este tema: “o essencial não é a quantidade de dinheiro que se possui, mas o facto de isso proporcionar - ou não - o acesso ao que é essencial à vida humana num contexto específico e dependente de uma série de factores diferentes, como o ambiente natural, as tradições culturais e religiosas, etc.”
É preciso aproximar pelo exame e pela crítica, capacidades fundamentais, instituições e pessoas, inteligência e bondade, e não apenas ficcionar essa realização, pois tal como advoga Sen “perguntar como vão as coisas e indagar se poderiam ser melhoradas, [é] uma parte integrante da demanda da justiça a que não se poderá escapar e que, aliás, deverá ser constante.” Michael Sandel defende-o também: “a justiça não tem apenas que ver com a forma certa de distribuir coisas. Tem igualmente que ver com a forma certa de valorizar as coisas.”

Da justiça como autonomia
Em 2001 Adela Cortina publica a obra Alianza y contrato: política, ética y religión. Nela estabelece, com vigor filosófico, a relação entre uma ética de mínimos, portanto cívica, e uma ética de máximos, configuradora do bem comum.

“A ética cívica é o conjunto de valores e normas que partilham os membros de uma sociedade pluralista, sejam quais forem as suas concepções de vida boa, os seus projectos de vida feliz.”
“O cumprimento da ética cívica pode exigir-se moralmente à sociedade (…). As éticas de máximos não podem ser objecto de exigência numa sociedade, apenas de convite.”

Cortina assume uma posição de relação mútua e, por sua vez, de não absorção entre a ética de mínimos e a ética de máximos. Ou para dizê-lo com Jonh Rawls entre a ideia “universalizada” de justiça e as distintas doutrinas compreensivas do bem comum. Uma não pode jamais subsumir a outra a bem da vida democrática e da vida circunstanciada, ou para dizê-lo com Aristóteles, da vida feliz. Por um lado, “os mínimos alimentam-se dos máximos”, ou seja, já inserido numa determinada comunidade, o cidadão deve responder às exigências da justiça, saber que esta mais do que um princípio é um valor, um bem. Por outro lado, “os máximos têm de purificar-se a partir dos mínimos.” Pensemos no caso do fundamentalismo religioso que faz coartar, através da ação violenta, o princípio incondicionado da humanidade. Não se purifica neste último e, portanto, perpetua a intolerância e a violência. E Cortina é clara neste ponto: ética de minímos e ética de máximos não podem ser autosuficientes. Se o forem acabam por “engolir o homem” e consequentemente a humanidade. Volvidos seis anos após a publicação de Alianza y Contrato, Adela Cortina escreve Ética de la razón cordial e como veremos, pela epígrafe abaixo citada, a sua conceção de civilidade não se centrará apenas na diferenciação entre ética de mínimos e ética de máximos. Recentrar-se-á na configuração humana do humano, ou seja, na forja ou inauguração do caracter. E diz o seguinte:

“A ética cívica foi-se constituindo como o conjunto de valores e princípios éticos que uma sociedade moralmente pluralista partilha e que permite aos seus membros construir a vida juntos.
Era - e é - a ética das pessoas enquanto cidadãs, comprometidas na vida de uma comunidade política da qual devem ser protagonistas indiscutíveis. (…)
Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos, e nunca instrução em princípios políticos, por muito que pertençam a constituições democráticas e por muito que se explique a história através da qual se geraram tais constituições.”

Sublinho: “Era - e é - ética: forja do caracter, do êthos”. O importante não é somente averiguar a justiça das ações levadas a cabo pelos seres humanos, é preciso saber ver se o sujeito que as protagoniza é um ser humano justo, com um caracter bem construído e, por sua vez, educado.  Voltamo-nos assim para questão do êthos como morada do ser, como toca diria Martin Heidegger, cuja “decoração” é inteiramente nossa e deverá ser integralmente autónoma.
E por esse motivo nomeio a justiça de autonomia.
Explico agora melhor essa nomeação. Em 1986, no prólogo dedicado à obra Ética mínima de Adela Cortina, José Luis Aranguren apontava às éticas procedimentais da justiça, de Kant a Habermas passando por John Rawls, a seguinte limitação: “À ética intersubjectiva, deve conjugar-se a ética intrasubjectiva, ou seja, o diálogo que cada um de nós somos.”
Se aprendemos com Aristóteles, e antes dele com o mestre Platão, a radicalidade do diálogo que devemos reavivar constantemente conosco próprios, ao jeito de exame diria antes Sócrates: “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”, a ética deve então ser prefácio da política e não o contrário. Em todo o caso, continuamos a insistir na inversão do percurso moral do ser humano ao mundo e valoramos apenas a ética como ética social dialógica. Colocamos a educação para a cidadania, por exemplo, antes da educação moral. E José Luis Aranguren tem razão, embora uma razão intempestiva: antes de o ser humano ser um diálogo inter, um diálogo com os outros, deve ser um diálogo intra, num pensar que examina o seu caracter e, por sua vez, o cria, inaugura e elenca aos mais próximos. Aranguren vê com acutilância o perigo de dissolução do fenómeno moral no direito e na política, reduzindo-se assim a ideia de valor aos princípios éticos e o papel inédito do sujeito em sociedade à responsabilidade das instituições.
Para concluir, refiro-me à definição de autonomia da vontade de Immanuel Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes:

“autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei. O princípio da autonomia é: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo como lei universal.”

A ética é primordialmente uma questão de atitudes. Kant tinha consciência desse factum da razão. O “querer mesmo”, a vontade, deve ajuizar e agir em sintonia com a “lei universal”. A autonomia pessoal deve ser capacidade autolegisladora de universalização. Deverá sê-lo. Sobretudo para aproximar cada vez mais autonomia e justiça, pessoa e humanidade. Realizar a lei moral dentro e fora de mim. No fundo, temos de viver sempre nas proximidades do seguinte dilema: “direito e política parecem bastar para regular as relações sociais, sem necessidade de perguntar à filosofia se são ou não humanas.” Este dilema é lançado por Adela Cortina em tom de suspeita, mas remete-nos também para a dimensão da esperança, da colheita. Indagar pela justiça é perguntar pela humanidade do humano, é perguntar por si próprio e pelo outro nas fronteiras que nos separam da desumanização. E mais do que perguntar, é fazer humanidade. Parafraseando Ortega y Gasset “o tigre não pode destigrar-se, mas o ser humano pode desumanizar-se” e para que tal não aconteça é preciso que Karl Jaspers tenha razão. E a tenha sempre. É preciso que a filosofia seja perigosa, que incomode… E que o seja munida do seu mais geminado conceito: o de crítica. Crítica constante em relação “[às] convenções, [ao] hábito de julgar que o bem-estar material é razão necessária e suficiente do bem viver, [à] vontade ilimitada do poder, [ao] fanatismo das ideologias, [ao] compadrio dos políticos.” É preciso indagar se as relações pessoais e sociais são ou não humanas, uma reflexão que é constante, disse-o mais acima Amartya Sen, e cuja constância é a bem da tensão entre liberdade e civilidade, autonomia e justiça.
  

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Heidegger e Atena. As fronteiras movediças do humano.

Atena, Museu da Acrópole em Atenas, século V a.C.


Esta reflexão é fruto do comentário à conferência proferida pela Professora Luísa Neto da Faculdade de Direito da Universidade do Porto intitulada A Bioética como novo Direito Natural? A convite do Grupo Filosofia e Espaço Público do Instituto de Filosofia da FLUP aquando do 2.º Ciclo de conferências Filosofia e condição tecnológica, a Professora suscita e discute acerca da bioética como novo direito natural e nesse horizonte colocou-nos a seguinte questão: “nem tudo o que não é punido é lícito, nem tudo o que não é proibido é lícito: devemos fazer algo apenas porque é possível?”
Esta afirmação/questão da Professora Luísa Neto sugere, a meu ver, uma imagem e um texto, ambos profundamente filosóficos. A imagem é a da deusa Atena no Museu da Acrópole de Atenas e o texto “A proveniência da arte e a determinação do pensar” (www.martin-heidegger.net) da autoria de Martin Heidegger. Trata-se de uma conferência proferida pelo filósofo em 1967 na Academia de Artes e Ciências de Atenas, uma reflexão sobre a deusa Atena, no seu papel de conselheira, iluminadora e guardiã da arte na Grécia antiga. Sabemos que Martin Heidegger foi um filósofo bastante dedicado à pergunta pela técnica e esta tem uma fulcralidade, diria ontológica, no seu pensar. Assim o reconhece na entrevista dada à revista Der Spiegel, “já só um deus nos pode ainda salvar” (www.martin-heidegger.net), publicada postumamente em 1976.  
A reflexão do filósofo sobre a técnica assegura pensá-la enquanto daimón do humano e avaliá-la como força violenta e subjugadora do seu “fazer” face à natureza. A techné grega é por si reconhecida como poder criador no sentido daquilo que impera no mundo como obra humana distinta do brotar da natureza - da phusis. Somente a técnica moderna, diz Heidegger, surge à filosofia como “dar que pensar”, pensar que não decorre do poder criador do humano enquanto tal, mas da sua incapacidade em pensar as suas fronteiras, os limites do poder criacional. O carácter inquietante do ser humano prende-se com a insondabilidade da sua ação no poder ou não poder saber aquilo que “faz” enquanto criação própria. O imperar do logos - palavra, cálculo, ordem - face à natureza, é o semblante moderno que pretende sondar toda a “brutalidade” da matéria viva e torná-la sua, conhecida, manipulável, comprovável.
Do mesmo modo que o filósofo pensa a técnica como aplicabilidade do método científico, e se demora nesse pensar, também nós hoje, um pouco distantes de Heidegger e ainda mais de Atena nos colocamos a pensar sobre as possibilidades e fronteiras do conhecer e, sobretudo, do agir humanos: “devemos fazer algo apenas porque é possível?” Não haverá um limite que se interponha entre a criação, ação humanas e a natureza, ou seja, entre aquilo que criamos e o que não precisa das mãos humanas para acontecer? Por último: estaremos nós conscientes desse limite, desse “marco-fronteira” entre a techné e a phusis?
Por esse motivo, escolhi Heidegger e a deusa Atena para poder pensar acerca do caracter inquietante - unheimlich - do ser humano e por este ser também, a meu ver, o dilema fulcral da bioética: conseguir estabelecer a fronteira entre o cuidado e a inquietude do ser, na autonomia que, por sua vez, e enquanto princípio primeiro da bioética, é humanitas do humano enquanto tal e terá de o ser. Sabemos que o impulso da criação científica e técnológica é sempre mais rápido, mais funcional do que o próprio pensar. Não guarda responsabilidade perante a fronteira que delimita o que é criado por nós e o que não precisa de nós para existir. Enquanto não formos capazes de meditar com cuidado sobre essa fronteira, através do pensar, a inquietude do ser tomará sempre conta de nós e a autonomia cederá. Se cede a autonomia, perde-se a humanitas do humano, a única capaz de conduzir o homem à verdadeira habitação do ser.
 Em 1947 Heidegger salienta na sua Carta sobre o humanismo o seguinte:

“O pensar trabalha na edificação da casa do ser; é como tal casa que a juntura do ser dispõe, sempre de acordo com o destino, a essência do homem para morar na verdade do ser. Este morar é a essência do “Ser-no-mundo”.
(…) Um dia seremos mais capazes de pensar o que é a “casa” e “habitar” a partir da essência do ser adequadamente pensada.”

            Destaco desta epígrafe três verbos cruciais na linguagem heideggeriana: pensar, habitar e ser e tento relacioná-los de um modo mais prosaico, vivencial, diria. O pensar é um meditar que nos permite habitar a casa do ser, mas não imediatamente nem totalmente… A meditação é um trabalho que leva tempo, toma o nosso tempo, e nem todos estamos dispostos a dá-lo ao ser que permite habitar o mundo e fazer dele a nossa casa. Volto então ao texto inicial “A proveniência da arte e a determinação do pensar”. E volto ao seu fim, não ao início que guardarei para mais tarde. A reflexão de Heidegger neste texto finda com um conceito bem conhecido do seu pensamento e de quem a ele se dedica: aletheia. A-letheia significa em grego o não-encoberto, ou seja, aquilo que se desvela, mas que sempre necessita do velamento e da obscuridade para existir, para surgir, para brotar. Heidegger associa à ideia grega de a-letheia a ideia de verdade: “todo o pôr-a-descoberto requer sempre o estar encoberto.” E associa também às suas palavras um dito de Heraclito: “àquilo que brota de si mesmo é-lhe próprio encobrir-se.”
Aqui se esconde o grande impensado da era moderna e do seu mundo como imagem. O que importa nos alvores da Modernidade, diz Heidegger, é desvelar tudo, desencobrir tudo, fazer do mundo uma ou várias imagens passíveis de cálculo e de codificação. Não há lugar para a a-letheia grega e muito menos para a voz conselheira dos deuses. Tudo é presentificado pelo sujeito do conhecimento e deve sê-lo. O mundo apresenta-se como adequação e não como revelação do ser ao homem. Este revelar, diriam os gregos, pressupõe um esconder. E, por conseguinte, volto à deusa Atena. Atena é para os gregos a deusa da sabedoria em três momentos chave. Num primeiro momento, Atena aconselha os homens nas suas mais diversas criações: da arte à política passando pela filosofia. A sua palavra conselheira prevê o caminho ainda não havido, alumia, clareia as veredas do ser na busca criacional. O seu olhar meditativo ilumina e dá ser ao que ainda não está criado, ao que somente pré-existe no homem. O seu olhar é o olhar da coruja que de noite ilumina, clareia o caminho dos homens, fá-los ver mais longe e ir além… Mas não muito além de si próprios, alerta Heidegger:

“o seu olhar meditativo não contempla apenas a figura invisível das possíveis obras humanas. O olhar de Atena descansa, sobretudo, no que permite a partir de si desdobrar-se nas coisas que não necessitam de ser produzidas pelo ser humano para se tornarem presentes.”

Se se atender bem à imagem da deusa Atena no museu da Acrópole olhamos a sua postura como a daquela que medita, que reflete perante a “pedra-marco”, a fronteira. Atena auxilia os homens nas suas façanhas e criações culturais, mas alerta-os também para o risco de se ultrapassarem, de pisarem a fronteira, o marco. O limite que estabelece a partir de si mesmo “o que não necessita de ser produzido pelo ser humano para se tornar presente”, para vir à luz. No mundo grego existe uma co-pertença entre techné e phusis, arte e natureza, aquilo que pode ser criado e o que é espontâneo, o dar-se. Ambas co-pertencem-se e assistem serenamente ao desvelamento do ser. Muitos poetas, entre os quais o poeta Ésquilo, sabem do poder alumiador e secreto de Atena. Ésquilo coloca as seguintes palavras na boca da deusa: “Só eu, entre os deuses, conheço a chave da casa em que, encerrado e selado, o raio repousa”. Como filha de Zeus, Atena sabe onde o pai guarda o raio, mas nunca fez uso dele. Sabe do limite que se impõe e conserva-o. Sabe que seria incapaz de o controlar, tal como Pandora não conseguiu controlar a saída dos males da caixa oferecida pelos deuses a Epimeteu.
            No entanto, como nos comportamos nós hoje no mundo dito científico? Guardamos a mesma sabedoria grega do limite ou ultrapassamo-la? Para responder a esta pergunta Heidegger recorre às palavras de Nietzsche: “O que caracteriza o nosso século XIX não é o triunfo da ciência, mas o triunfo do método científico sobre a ciência.” Heidegger explica: “o método é o projecto antecipativo do mundo, que fixa o rumo exclusivo da sua investigação possível. (…) O da total calculabilidade de tudo o que é acessível e comprovável mediante experimentação.” Este cálculo-ordem inclui não só o mundo, mas o próprio ser humano cuja custódia e configuração é “factor de perturbação” e de clausura, clausura de si em si mesmo. O pensar não toma parte nos caminhos do conhecer e do produzir. O ocaso do Ocidente enquanto progredir do método científico expressa-se no modo de antecipar e representar o curso do mundo e do homem.
A bioética é hoje um esforço do pensar em relação ao conhecer e ao produzir da ciência, as ações e consequências da sua investigação. Uma ponte meditativa entre “os conhecimentos biológicos e os valores humanos” (Van Rensselaer Potter). A bioética alerta, através de diversas áreas do saber tais como a filosofia ou o direito, para o progredir da ciência enquanto método instrumentalizado e provocador do ser, e para a sua prentensa neutralidade. Heidegger desvirtua, destrói o papel privilegiado do ser humano no universo e tenta colocá-lo em harmonia, em cuidado para com o ser. Sorge em alemão quer dizer, simultaneamente, cuidado e inquietude e, por vezes, o ser humano não quer apenas ser e estar-no-mundo enquanto guardião zeloso do “aparecer”, do “desocultar” do ser. Quer que ele apareça sempre, invoca ao ser para que este se produza interminavelmente e, por isso, provoca-o, ultrapassando os seus próprios limites, ou seja, as fronteiras humanas da ação e da invenção. Estará a bioética preparada para responder a esta provocação do ser? Para iluminar através do pensar a relação entre o cuidado e a inquietude? Para marcar a sua fronteira?
São mais as perguntas do que as respostas é um facto.
Termino com as palavras de Margaret Thatcher reavivadas há pouco tempo no filme The Iron Lady realizado por Phyllida Lloyd e protagonizado por Meryl Streep. Questionada pelo seu médico de família sobre o seu estado de saúde na universal pergunta: como é que se sente? Thatcher suspira e medita: “hoje em dia as pessoas apenas sentem, não pensam.” E continua: “o grande problema do nosso tempo é que somos governados por pessoas que apenas se preocupam com sentimentos e não por pessoas que acreditam em pensamentos e ideias.” O médico replica: “Nesse caso, Margaret, o que é que pensa?” Ela responde: 

“Cuidado com os pensamentos, eles transformam-se em palavras.
Cuidado com as palavras, elas transformam-se em ações.
Cuidado com as ações, elas tornam-se um hábito.
Cuidado com o hábito, ele forja o caracter.
Cuidado com o caracter, pois ele é o seu destino.
Somos o que pensamos.”