sábado, 26 de novembro de 2011

Tecnologia e afetos. Uma conversa com Antígona, Heidegger e... Freud.

Ontem, dia 25 de Novembro, realizou-se na FLUP a conferência inaugural dedicada ao tema Filosofia e condição tecnológica. No papel de primeiro convidado e contributo o Dr. Pedro Granja do INEB apresentou uma comunicação clara e distinta sobre A Medicina Regenerativa e o Homem do Futuro. Primou pela simplicidade, pela cordialidade, por um importante “chegar às pessoas” numa área tão difícil como a medicina e tendo em conta também um público de leigos nessa matéria. Durante toda a conferência tirei notas, pensei nas implicações e consequências morais da medicina regenerativa, mas fi-lo em silêncio. Hoje, com mais distanciamento sobre o assunto, nunca com distância, posso afirmar que todas as palavras do Professor Granja e da minha colega Sílvia Ferreira, que comentou as suas palavras do ponto de vista da reflexão filosófica, fizeram-me lembrar simplesmente… um poema. Um dos mais belos do coro d’Antígona de Sófocles que passo a partilhar:   

“Muitos prodígios há; porém nenhum
maior do que o homem.
Esse, co’o sopro invernoso do Noto,
passando entre vagas
fundas como abismos,
o cinzento mar ultrapassou. E a terra
imortal, dos deuses a mais sublime,
trabalha-a sem fim,
volvendo o arado, ano após ano,
com a raça dos cavalos laborando.

E das aves as tribos descuidadas,
a raça das feras,
em côncavas redes
a fauna marinha, apanha-as e leva-as
o engenho do homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
de longas crinas, o jugo lhe põe,
vence o touro indomável das alturas.

A fala e o alado pensamento,
as normas que regulam as cidades
sozinho aprendeu;
da geada do céu, da chuva inclemente
e sem refúgio, os dardos evita,
de tudo capaz.
Na vida não avança sem recursos.
Ao Hades somente
não pode fugir.
De doenças invencíveis os meios
de escapar já com outros meditou.

Da sua arte o engenho subtil
p’ra além do que se espera, ora o leva
ao bem, ora ao mal;
se da terra preza as leis e dos deuses
na justiça faz fé, grande é a cidade;
mas logo a perde
quem por audácia incorre no erro.
Longe do meu lar
o que assim for!
E longe dos meus pensamentos
o homem que tal crime perpetrar!”

O coro d’Antígona pronuncia-se após a sua protagonista ter realizado o rito fúnebre sobre o corpo do seu irmão, uma ação levada a cabo contra a ordem de Creonte, símbolo das normas justas da cidade que lidera. Antígona desafia a ordem pública e à sua imagem e semelhança Sófocles faz representar não a moderação e a calma humanas, mas sim a verdadeira violência aquando do esquecimento dos devidos limites. O coro chora o homem como “a mais demoníaca de todas as criaturas” nas palavras de Slavoj Žižek. E pelo poetar, refere Martin Heidegger, Sófocles desvela a verdadeira ontologia do humano: o seu caracter terrivelmente inquietante (unheimlich).
A reflexão do filósofo alemão sobre a técnica assegura pensá-la enquanto daimón do humano e avaliá-la como força violenta e subjugadora do seu “fazer” face à natureza, cuja techné grega é por si reconhecida como “poder criador” no sentido daquilo que impera no mundo como obra “humana” distinta do brotar da natureza (phusis). Somente a técnica moderna, diz Heidegger, surge à filosofia como “dar que pensar”, pensar que não decorre do poder criador do humano enquanto tal, mas da sua incapacidade em pensar as suas fronteiras, o limite do seu poder criacional. O carácter inquietante do ser humano prende-se com a insondabilidade da sua ação no poder ou não poder saber aquilo que “faz” enquanto inauguração sua, própria. O imperar do logos face à natureza - palavra, cálculo, ordem - é o semblante moderno que pretende sondar toda a “brutalidade” da matéria viva e torná-la sua, conhecida e manipulável.
Heidegger pensa precisamente a fronteira entre o poder e o criar humanos pela figura da deusa Atena e as palavras do filósofo bem o revelam nessa metáfora que é a do olhar: “o seu olhar meditativo não contempla apenas a figura invisível das possíveis obras humanas. O olhar de Atena descansa, sobretudo, no que permite a partir de si desdobrar-se nas coisas que não necessitam de ser produzidas pelo ser humano para se tornarem presentes.” Existe algo de subterrâneo, nas proximidades de Freud, que faz com que o ser humano esqueça os seus limites e se ultrapasse…
O que pode o humano criar e o que não deve criar? Esta dupla pergunta está singularmente sujeita ao plano da afetividade, das afeções ou, mais precisamente, daquilo a que Freud chama o princípio de prazer. O controlar da natureza é do domínio do dominar. O “brotar” humano que toma o lugar da natureza é do domínio do ultrapassar, do domínio de um querer sempre mais do que aquilo que nos é permitido fazer. Surge então o velho dilema entre a necessidade e o supérfluo. Entre a compulsão e a repetição. Dilema, diz Freud, entre o princípio de prazer e o princípio de realidade, este último entendido como a verdadeira via crucis da Psicanálise na resposta à pergunta como “educar” uma pulsão sexual? Explica-o da seguinte forma:

“Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho mental mas que, do ponto de vista da autoconservação do organismo perante as dificuldades do mundo externo é, desde o começo, ineficaz e altamente perigoso. Sob a influência das pulsões de autoconservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. Este princípio não abandona a intenção de, no final, obter prazer, mas, no entanto, exige e leva a efeito o adiamento da satisfação, o abandono de um certo número de possibilidades de obter satisfação e a tolerância temporária do desprazer, como passos no caminho longo e indirecto que conduz ao prazer. No entanto, o princípio de prazer persiste longamente como método de trabalho empregue pelas pulsões sexuais, que são difíceis de “educar” e, partindo dessas pulsões, ou do próprio ego, muitas vezes consegue dominar o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo.”

“Além do princípio do prazer” é um texto que Freud escreve em 1920 e cuja epígrafe que cito não é de todo uma citação ingénua. Falou-se do princípio de prazer de Freud no debate que se seguiu à conferência do Professor Granja e ao comentário da Sílvia. Falou-se do princípio de prazer, não no princípio de realidade. E a última palavra que destaco nessa epígrafe é o verbo “educar”. E não é também de todo um destacar ingénuo. Vou primeiro aos afetos…
Um dos avanços tecnológicos mais noticiados da medicina regenerativa, entre outros, é termos a possibilidade de escolher a cor dos olhos dos nossos filhos, a cor do seu cabelo e quem sabe um dia a sua capacidade “alargada” de inteligência. Surge-me de rompante a imagem de um mundo de Einsteins todos de língua para fora, a desdenhar da nossa pacata ignorância: olha o menino tão inteligente que é! Cá está: o primeiro tlim tlim da afetividade. Agora outro exemplo, o mais grave: o da imortalidade do ser humano. Se em 2045 tal como revela a Revista Time, o homem torna-se-á imortal, imaginem o que não faremos para cá ficarmos, no mundo, nós e os nossos familiares? Seremos até capazes de matar… A que custo seremos então imortais? Segundo tlim tlim da afetividade… Por ambos os motivos, digo mais com Freud do que com Heidegger, a região subterrânea da tecnologia, a sua razão de ser, é a afetividade humana enquanto impulso, inclinação para satisfazer um prazer em detrimento do desprazer. Não coloco, neste ponto, a questão da necessidade, como por exemplo querermos salvar um familiar nosso de uma doença crónica, mas sim a questão do supérfluo, a da ação da compulsão à repetição, à mesmidade, ao ter invejável de coisas, instrumentos e equipamentos que as imagens incitadoras do consumismo mostram e (re)mostram… Não há neutralidade na tecnologia. Não há. Toda ela é tecida de afetos, “feita” para os afetos, inicitadora e capaz de nos afetar…
Agora, em uníssono, Freud e Heidegger chamam a atenção para o educar e para o pensar como tarefa, ou diria-o num sentido mais ético, como exigência pedida ao ser humano em tempos tão movediços. Ambos ensaiam uma resposta capaz de nos conduzir do prazer à realidade, do criar humano à fronteira do seu fazer, sem subsumir jamais um no outro. “Cair na real” como diz, e sabiamente, o povo brasileiro. A nossa vida é feita de pulsões, de afetos, de impulsos, mas também há que saber educá-los, de pensar sobre eles e julgar se efetivamente são ou não “camaradas” para a nossa ação. Do escolher a cor dos olhos dos nossos filhos à imortalidade vai um passo muito largo e é nessa largura que se obnubila o que jamais suspeitamos: a perda do espanto, da maravilha, daquilo que aparece à nossa vista como “milagre” insondável. Sinceramente não quero padronizar a minha cria. Quero que ela seja uma alegre e estridente novidade, uma clareira do ser, diria com Heidegger, somente “verdadeira” (aletheia) porque há uma região desse mesmo ser que constantemente se esconde, que não se mostra totalmente. Um pouco ao modo como termina Freud a sua reflexão sobre o princípio de prazer pela mão de Rückert: “Aquilo a que não podes chegar voando, podes alcançar coxeando… As Escrituras dizem-nos que não é pecado coxear.”


  



4 comentários:

  1. "Da sua arte o engenho subtil
    p’ra além do que se espera, ora o leva
    ao bem, ora ao mal"

    Lá está a tal polaridade que existe em toda a criação humana instrumental. Ora com um pé no bem, ora com um pé no mal, sempre na corda bamba, sempre no fio da navalha da escolha. Como bem refere, a criação deriva de uma pulsão, a descoberta e a necessidade de desvelar o mundo tendo em vista a sua contenção, o seu controlo, a sua dominação. Vencer a morte sempre foi uma das grandes aspirações da humanidade, senão a maior. Consciente da sua finitude, o homem lança um grito de revolta suficientemente forte para ser audível pela eternidade. A magnitude das obras do passado, megalíticas, de majestade inefável, dão testemunho silencioso de uma época de mistérios profundos - lembro-me da grande pirâmide, mas também de Stonehenge ou Machu Pichu. Os próprios deuses, figuras hibrídicas, meio humanos meio animais, centauros, minotauros. O desafio, sempre o desafio. Perante os instrumentos certos, como não pode o homem desejar igualar os deuses, desafiar a ordem natural, igualá-los na sua hybris? A necessidade de desafio está inscrita na genética do homem; é tão humana como a própria linguagem.

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  2. Sim Ruben! Este poema de Antígona é comentado não só por Heidegger e Zizek, mas também por Hans Jonas, por exemplo.
    É interessante que muitas das
    interpretações "éticas" da tragédia Antígona de Sófocles vão na direção de que a protagonista simboliza a justiça universal. Ela sim a promove ao contrário da regra citadina de Creonte. Tanto Heidegger como Zizek vêm no ato de Antígona algo de demoníaco, de violento, que desconstroi a norma instituída a favor de um bem maior. Seria caso para perguntarmos: estará assim tão longe a justiça da violência? Pode um ato violento ser justo? Violência emancipatória, diz Zizek. Aí não há dualidade, há tensão entre dois pólos que jamais imaginariamos juntos. Mas eles unem-se e a polaridade deixa de fazer sentido. Lá está: "dá que pensar"!

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  3. Um tema extremamente actual que a Professora nos traz e repleto de complexidade. Não só preocupa a filosofia como qualquer outra área. Até onde o Homem pode e quer ir? E como o está a fazer? Já não se trata de desafiar as leis de Creonte, e fundamentar uma justiça universal, mas confrontar os nossos próprios valores noutra dimensão. Que tecnologia é essa que se desenvolve sem nos dar tempo de a reflectir, por vezes, e de a acompanhar de forma cuidadosa? O que queremos afinal para a nossa vida, que segredos queremos desvendar e perder para sempre? Será que sabemos realmente se queremos viver eternamente, e nunca acabar? O engraçado é que nunca nos pomos a pensar que desígnios estão ocultos neste desenfrear tecnológico. Marcante no seu texto, é a consideração que "não há neutralidade na tecnologia. Não há. Toda ela é tecida de afetos, “feita” para os afetos, inicitadora e capaz de nos afetar…". E seremos contra um desenvolvimento que nos poderá tornar perfeitos fisicamente? Eliminar maleitas que nos afastam dos que amamos e não queremos deixar? E depois, perde-se a fragilidade da vida, a tragicidade de estar cá e viver com a condição de morrer. Eticamente está aqui um campo profuso de interpretações para uma aurora que jamais se quererá dissipar.

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  4. Sim Raquel! As tuas palavras fizeram-me lembrar as palavras de uma filósofa de quem gosto muito, Martha Nussbaum: "Através das nossas ligações afectivas, tornamo-nos susceptíveis a perdas que não são nossas por si mesmas. Uma pessoa sem ligações fortes tem apenas a sua própria saúde, virtude e sucesso, para se preocupar. A pessoa que ama outra tornar-se-á aflita, ansiosa, a partir de um número muito maior de acontecimentos, e estará duplamente sujeita à sorte." Esta passagem é da obra The fragility of goodness de Nussbaum. De cunho muito aristotélico: contingente e trágico na relação entre a medida e a desmedida do bem!

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